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Opinião | Minha experiência como jurada no fórum criminal

O júri força a sociedade a encarar suas contradições. Enquanto o juiz analisa leis, nós, jurados, avaliamos humanidade. Vi ali a desigualdade escancarada, uma profissional respeitada contra um homem invisível, ambos vítimas de um sistema que não previne violência nem reabilita

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convidado
Por Mônica Quiquinato
Atualização:

No dia 25 de março vivi uma experiência intensa como júri popular. Participo como jurada há cerca de um ano e meio e, desta vez, fui sorteada pela primeira vez. A seleção aleatória me escolheu como a sexta jurada, entre um grupo diverso que incluía empresários e educadores. Minha profissão de jornalista não foi uma barreira para minha seleção, apesar de minhas expectativas iniciais.

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Mergulhei em um julgamento que me fez questionar não apenas o sistema judiciário, mas também meu lugar nele. Inicialmente, enfrentei dificuldades logísticas, como ajustar minha presença às exigências do tribunal, especialmente em meio a uma agenda profissional atribulada. Após algumas ausências justificadas, dediquei este dia inteiro a uma audiência.

O processo envolvia um homem acusado de agredir uma enfermeira e professora da Unifesp, de 60 anos, com trajetória acadêmica e profissional reconhecida. Ela relatou ter sofrido violência física em sua casa, com fraturas nas costelas e traumas psicológicos, além de mencionar que o acusado teria um histórico de feminicídio, alegação que se mostrou frágil diante da falta de provas.

Do outro lado, o acusado, um homem em situação de rua, analfabeto, ex-detento (condenado por roubo para sobreviver) e alcoólatra. Seu depoimento revelou uma vida de abandono: sem acesso a programas sociais como o CadÚnico, sem tratamento para o alcoolismo e sem sequer uma dentadura após ter quebrado durante o incidente. Um detalhe que me chocou: a ausência de dentes pra mim é um símbolo da perda de dignidade.

A audiência foi um embate de narrativas. A promotoria na defesa da vítima, enquanto a defesa do acusado expôs sua vulnerabilidade extrema, um homem sem identidade, literal e simbolicamente, vítima de um Estado que falhou em oferecer assistência básica. Fiz perguntas-chave, como: “ele cometeu o feminicídio?” e “teve acesso a políticas públicas nos centros de acolhimento?” A primeira esbarrou na falta de documentos (o atestado de antecedentes de Pernambuco nunca foi solicitado), a segunda confirmou o abandono.

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A votação foi tensa. A materialidade do crime foi unânime, mas a intenção de matar dividiu o júri, que decidiu que não houve intenção. No fim, o juiz condenou-o a cumprir pena em “domicílio”, ironia cruel para quem não tem casa.

Confesso que odiei cada momento: ficar incomunicável, lidar com a ansiedade de horas sem celular, a dor física de permanecer sentada. Questionava: “por que eu, sem formação jurídica, devo decidir o destino de alguém?”. Mas teve um momento em que o juiz pediu para o jurado responder uma pesquisa para seu doutorado que me fez refletir. Uma pergunta ecoou: “o júri popular é necessário?”

Sim, é. O júri força a sociedade a encarar suas contradições. Enquanto o juiz analisa leis, nós, jurados, avaliamos humanidade. Vi ali a desigualdade escancarada, uma profissional respeitada contra um homem invisível, ambos vítimas de um sistema que não previne violência nem reabilita.

Saí com a certeza de que o júri popular, apesar de imperfeito, é um mecanismo democrático vital. Ele expõe falhas estruturais (como a falta de provas concretas e a negligência com populações marginalizadas) e nos obriga a confrontar nossos preconceitos. Aquele homem não era só um agressor, era um sintoma. E a vítima, uma mulher forte, também era refém de um Estado que não a protegeu.

No fim, o julgamento não foi apenas sobre um crime, mas sobre quantas vidas são destruídas antes que a violência aconteça, e quantas outras serão, se nada mudar.

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Foto do autor Mônica Quiquinato
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Mônica Quiquinato
Júri popular, jornalista e mestranda pela USP em Ciências da Comunicação. Foto: Arquivo pessoal
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