O ministro Artur Vidigal, do Superior Tribunal Federal (STM), liberou para julgamento o recurso de uma mulher de 55 anos, falsa pensionista do Exército, condenada em primeira instância a três anos e três meses de reclusão. Ele havia pedido vista do processo.
Durante mais de 30 anos, Ana Lucia Umbelina Galache de Souza recebeu dos cofres públicos R$ 3,7 milhões, após falsificar uma certidão de nascimento e se passar por “filha” de um expedicionário da 2ª Guerra Mundial, integrante da Força Expedicionária Brasileira (FEB), recebendo os proventos após a morte do idoso.
Segundo a denúncia do Ministério Público Militar (MPM), a fraude teve início em 17 de outubro de 1988 e foi descoberta e cessada em 31 de maio de 2022.
A Defensoria Pública da União (DPU), que representa Ana Lucia, pede a absolvição alegando ausência de dolo, ou seja, intenção de praticar crime.
A avó paterna da denunciada, irmã e procuradora do idoso, ao perceber que ele não tinha filhos ou dependentes e que a pensão seria extinta após sua morte, elaborou um esquema para que o dinheiro permanecesse com a família.
Em 1986, a irmã do ex-combatente vislumbrou a possibilidade de registrar a neta, à época com 15 anos de idade, como filha do veterano, a fim de que a pensão especial deixada por ele ficasse para a denunciada. Contudo, houve um acordo entre ambas de que parte dos valores seria dividida mensalmente.
Para isso, avó e neta foram ao cartório, alteraram o nome da menor, bem como a data de nascimento, e a registraram como filha do pensionista, conforme certidão registrada no Cartório Santos Pereira, em Campo Grande (MS), no dia 25 de setembro de 1986. Depois, providenciaram a Carteira de Identidade e o Cadastro de Pessoa Física (CPF) em nome da menor. Dois anos depois, o pensionista morreu, e a avó imediatamente deu entrada junto ao órgão responsável pela pensão do Exército, requerendo habilitação de pensão para a “filha” e única herdeira do ex-combatente. A partir de 1989, os proventos de segundo-sargento, em sua integralidade, passaram a ser pagos à acusada.
A fraude só veio à tona em dezembro de 2021, quando a avó, descontente com o valor da pensão que a neta lhe repassava, registrou uma ocorrência na Polícia Civil e informou ao Exército que a acusada, na realidade, tinha outro nome e que era sobrinha-neta, e não filha, do ex-combatente.
“A sua conduta perdurou por mais de 33 (trinta e três) anos, durante o período de 17 de outubro de 1988 a 31 de maio de 2022, e o prejuízo causado foi contabilizado no valor total de R$ 3.723.344,07 (três milhões, setecentos e vinte e três mil, trezentos e quarenta e quatro reais e sete centavos), conforme Laudo Pericial Contábil de f. 172/330 do IPM”, diz o relatório do processo,
O Exército abriu um Inquérito Policial Militar (IPM), que comprovou a denúncia e cessou os pagamentos da pensão. Em interrogatório, a denunciada confessou que utilizava o nome falso apenas para receber a pensão especial e que sabia que não tinha direito ao benefício. Também afirmou que dividia a pensão com sua avó e que, nos meses em que não conseguia repassar o valor acordado, a avó, que faleceu em maio de 2022, a ameaçava denunciá-la.
Por isso, o MPM denunciou a acusada à Justiça Militar da União pelo crime de estelionato, previsto no Código Penal Militar. A avó não foi denunciada em virtude de seu falecimento.
“Assim agindo, a denunciada cometeu o delito de estelionato, tendo em vista que utilizou-se de sua falsa condição de dependente como meio de obter vantagens pecuniárias ilícitas, em prejuízo do erário, mantendo em erro a Administração Militar de modo continuado. Sua conduta perdurou por mais de 33 anos, de 17 de outubro de 1988 a 31 de maio de 2022, e o prejuízo causado foi contabilizado em R$ 3.723.344,07, conforme Laudo Pericial Contábil”, informou a promotoria.
Condenação na primeira instância
No ano passado, o juiz federal da Justiça Militar, Luciano Coca Gonçalves, de forma monocrática, decidiu condenar a ré. Segundo o magistrado, a ré permaneceu por mais de três décadas recebendo indevidamente a pensão especial e, apesar de instada por seu marido a cessar o ilícito, continuou a enganar a Administração Militar e a receber o benefício, o que revela maior intensidade do dolo. A extensão do dano deve ser considerada em seu desfavor, já que houve expressivo prejuízo ao erário.
O valor elevado e anormal, disse o juiz, extrapola o resultado razoável previsto para o crime e não foi restituído, sendo difícil que venha a ser recuperado, considerando as condições financeiras da ré.
“O meio empregado foi o uso de documento falso para enganar a Administração Militar. Entretanto, tal conduta não extrapola a tipicidade penal do crime em análise, que requer a utilização de meio fraudulento, razão pela qual não deve ser considerado como circunstância desfavorável para evitar o bis in idem”, fundamentou o juiz.
Inconformada com a decisão, a defesa da mulher recorreu ao STM, em Brasília. Na Corte, no último mês de setembro, o caso foi analisado pelo ministro relator Odilson Sampaio Benzi, que votou por negar provimento ao apelo dos advogados. No entanto, o ministro Artur Vidigal de Oliveira pediu vista do processo para melhor análise do caso. Ainda não há data definida para que o processo volte à pauta do plenário para apreciação dos demais ministros.
Apelação Criminal Nº 7000193-97.2023.7.00.0000/MS
COM A PALAVRA, A DEFESA
A reportagem do Estadão busca contato com a defesa. O espaço está aberto para manifestação.
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