“Esperar que a letra se forme” é a exposição que o Instituto Tomie Ohtake oferece, de um robusto conjunto de obras produzidas por Mira Schendel. Esta notável artista, admirada em todo o planeta, nasceu em Zurique, em 1919. Faltou adequada celebração de seu centenário, em 2019. Mas por ela fala sua obra. Hoje disponível a quem queira constatar sua importância nas artes plásticas e verificar seu domínio sobre inúmeras linguagens, num exercício de talento pioneiro e visionário.
Seu nome original era Myrrha Dagmar Dub, ascendência judaica, num misto tcheco, alemão e italiano. Sentiu na pele o antissemitismo e foi expulsa da UniversitàCattolica del Sacro Cuore, em Milão.
Ali estudava filosofia e foi perseguida continuamente, vendo-se obrigada a fugir entre 1941 e 1949, quando finalmente deixou a Europa e veio para o Brasil. Viveu em Porto Alegre e São Paulo e produziu intensamente. Sua obra é singular e se situa na vasta área de rico diálogo entre arte e poesia concreta, aventurou-se na produção neoconcreta e mergulhou nos instigantes experimentos das décadas de 1960 e 1970.
A visita ao Instituto Tomie Ohtake é a oportunidade para refletir sobre a poliédrica multiatenção de Mira, atenta ao mistério da palavra convertida em arte visual, potencializando os seus efeitos para os olhos realmente sensíveis.
São mais de duzentas e cinquenta obras, num esforço de busca em museus e coleções particulares de todo o mundo e que os curadores Galciani Neves e Paulo Miyada quiseram oferecer uma exposição-ensaio acerca da presença do sinal gráfico, da letra, da palavra, do texto, da garatuja na obra de Mira Schendel, “artista cuja construção poética acontecia, entre tantos processos, no desenho-escritura como exercício do corpo”.
O incansável afã de Mira era uma busca permanente e inquieta por todas as maneiras de capturar a vivência do instante. Por isso é que “sua produção consiste em um dos mais densos corpos de pensamento experimental acerca das relações entre a matéria, o desenho e a escrita em alfabeto latino. Valendo-se desses elementos, Mira ousou traduzir a vida em símbolo – no seu caso, a letra”.
A visita à exposição desperta a imaginação de todas as pessoas que sentem a necessidade de encontrar na palavra o único testemunho de sua efêmera passagem pelo planeta. Podem os seres sensíveis penetrar no “reino da linguagem”, tão bem explorado por Mira, para quem “a sequência das letras no papel imita o tempo, sem poder realmente representa-lo. São simulações do tempo vivido, e não capturam a vivência do irrecuperável, que caracteriza esse tempo. Os textos que desenhei no papel podem ser lidos e relidos, coisa que o tempo não pode. Fixam, sem imortalizar, a fluidez do tempo”.
O roteiro da exposição é sedutor e oferece a chance de momentos lúdicos, de forma a favorecer a meditação que se torna rara no ritmo automatizado e alucinante de vidas apressadas. Vidas que parecem cuidar da subsistência, enquanto vão em direção à morte, sem o instante da reflexão, do encontro consigo mesmo.
A palavra era lenitivo e refúgio para Mira, que ao cruzar o Atlântico, trabalhou como datilógrafa e dominava inúmeros idiomas. Sentiu o que era o repúdio ao imigrante estrangeiro e teve a coragem de externar sua experiência, em cartas abertas enviadas e publicadas no jornal gaúcho “Correio do Povo”.
A origem multiétnica, a desenvoltura com que encontrava similitudes e distinções entre verbetes nas várias línguas em que se exprimia, o sofrimento do preconceito antissemita de crueldade capaz de gerar um Holocausto, o contato com culturas que, embora transplantadas da Europa geraram inexplicável repúdio contra o “de fora”, tudo isso permitiu a explosão de miríades de manifestações artísticas.
Sua filha Ada e seu neto Max Schendel, zelosos preservadores de sua produção, propiciam a uma legião de pessoas se deleitarem com o legado imperecível de Mira. Ela partiu fisicamente em 1988, em São Paulo, ano em que o constituinte devolveu o Brasil a vocação democrática. Mas a atualidade de Mira Schendel, realçada por figuras como Vilém Flusser, Haroldo de Campos, Mário Schenberg e tantos outros gigantes, é atemporal. Mira é eterna.
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