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Opinião|Moraes X Elon Musk: pode uma decisão judicial atingir quem não é parte no processo?

Ora, se os usuários do X não foram citados, por não fazerem parte da relação processual, e sequer intimados pessoalmente ou pelos meios previstos na legislação (pelo correio, por carta precatória, por edital etc.) não podem ser obrigados a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, vez que alijados de apresentar defesa e de produzir prova

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convidado
Por César Dario Mariano da Silva

Causou-me espécie a cominação de multa diária (astreinte) para qualquer pessoa que acessar a rede X por meio de VPN em razão dela ter sido proibida de funcionar no país.

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Não vou entrar no mérito da questão, isto é, se a decisão de banir o X do país está correta, ou não, bem como se o foro competente é a Excelsa Corte.

Vou me limitar à decisão que atinge potencialmente a milhões de brasileiros, que empregavam o X das mais diferentes maneiras.

Um dos direitos previstos na Constituição é o devido processo legal, que engloba os direitos à ampla defesa e ao contraditório[1], que são, na verdade, regras constitucionais, que obedecem a lógica do tudo ou nada, isto é, existem ou não existem, valem ou não valem, não podendo ser limitadas, o que implicaria seu afastamento, não apenas do caso concreto, que é típico dos princípios, mas do ordenamento jurídico vigente.

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Os princípios são normas dotadas de alto grau de generalidade que servem de base para a formação do ordenamento jurídico. A partir dos princípios a legislação deve ser criada e interpretada. Eles podem ser empregados para orientar a interpretação das leis de teor obscuro ou para suprir-lhe o silêncio.

Devido à sua generalidade, os princípios dependem de outras normas para poderem ser plenamente aplicáveis, inclusive das regras jurídicas, que lhes dão concreção. Como observa Humberto Ávila:

“Os princípios possuem, pois, pretensão de complementariedade, na medida em que, sobre abrangerem apenas parte dos aspectos relevantes para a tomada de decisão, não têm a pretensão de gerar uma solução específica, mas a de contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão. Os princípios são, pois, normas com pretensão de complementariedade e de parcialidade[2] “.

As regras jurídicas também são diretrizes, mas, contrariamente aos princípios, possuem pretensão terminativa, uma vez que pretendem solucionar especificamente a questão. Elas são criadas para incidir em uma situação jurídica determinada, sendo, pois, suscetíveis de aplicação direta.

Pode ocorrer que existam regras que se choquem, ou seja, que entrem em conflito. Nesse caso, uma delas será aplicada e a outra excluída. Ou as regras são eficazes e, em consequência, aplicáveis, ou não o são, devendo ser alteradas, ou seja, obedecem à lógica do tudo ou nada. Não há possibilidade de eficácia simultânea de regras contraditórias.

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Já os princípios são sempre gerais e comportam uma série de aplicações. Havendo conflito entre princípios, apenas um deles será aplicado ao caso concreto. Porém, os princípios podem não ser aplicados em determinado caso e, mesmo assim, continuam válidos e eficazes, podendo ser aplicados em outra situação.

Considerando que os princípios colidentes continuam válidos e eficazes e podem, portanto, ser aplicados em outra situação, é possível sustentar, também, que não existe conflito entre princípios, mas apenas entre regras, inclusive daquelas que dão concreção aos princípios.

As regras e os princípios são espécies de normas jurídicas. Com efeito, a norma é o gênero, enquanto os princípios e as regras espécies.

Não há, portanto, como entender um direito sem analisar o princípio que o embasa.

Exemplo típico de regra constitucional é a livre manifestação do pensamento. Ela existe ou não existe. Não pode ser aplicada em determinado caso e em outro não. Claro que há limites constitucionalmente previstos. Assim, havendo choque com um princípio ou outra regra, devem ser sopesados para verificar qual preponderará no caso concreto. O que ocorre não é o afastamento da liberdade de expressão, mas a extrapolação de seus limites, como quando se ofende gratuitamente a outra pessoa com a intenção de ferir sua honra ou quando se ameaça alguém de causar-lhe mal injusto e grave. Nestes casos, haverá infração penal e civil punível e indenizável, inclusive.

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Quis explicar a diferença entre princípio, regra e norma jurídica para deixar bem claro que não há como afastar os direitos ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, vez que se trata de regras e, por isso, devem ser sempre empregados.

E nem mesmo por emenda constitucional podem ser suprimidos ou restringidos, posto que se trata de direitos fundamentais, núcleos intangíveis da Constituição Federal, comumente chamados de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, da CF).

O devido processo legal, isto é, aquele que obedece aos procedimentos previstos na legislação e aos princípios e regras constitucionais a ele aplicáveis, não são mero detalhe. Sua violação importa nulidade absoluta do ato, sequer necessitando prova do prejuízo, que é presumido, justamente por se tratar de direito fundamental de qualquer pessoa.

Toda pessoa, para que faça parte da relação processual no polo passivo, deve ser citada, ou seja, avisada de que existe uma ação contra si e que pode apresentar defesa. Sem a devida citação qualquer processo é nulo por violar o devido processo legal por não possibilitar o contraditório (direito a contrariar as provas e a produzir outras) e a ampla defesa (direito a apresentar todas as respostas e recursos existentes).

A partir da citação válida a pessoa, agora considerada ré, tem direito a ser notificada para os atos processuais futuros ou intimada dos passados, a fim de que possa adotar as medidas processuais pertinentes, a depender da natureza da causa (cível, criminal, trabalhista, eleitoral etc.), cada um desses ramos com procedimento próprio previsto na legislação.

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No caso do X, somente esta empresa, e talvez alguma a ela ligada, se assim existir, nos termos da legislação, podem ser obrigadas a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, sob pena de imposição de multa cominatória no caso de descumprimento da ordem judicial, normalmente determinada de forma liminar, possibilitando, de qualquer maneira, o contraditório e a ampla defesa ulterior, com acesso a todas as provas produzidas (contraditório diferido).

Ora, se os usuários do X não foram citados, por não fazerem parte da relação processual, e sequer intimados pessoalmente ou pelos meios previstos na legislação (pelo correio, por carta precatória, por edital etc.) não podem ser obrigados a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, vez que alijados de apresentar defesa e de produzir prova.

Ademais, se não lhes foi dada ciência formal da decisão judicial por qualquer meio legalmente previsto, que não é caso de notícia pela imprensa ou redes sociais, o ato judicial não se completou e as pessoas em geral, que não fazem parte da relação processual, não podem ser obrigadas a absolutamente nada, aplicado o princípio da legalidade em sentido amplo ou lato, previsto no artigo 5º, inciso II, da CF: “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

E a decisão judicial, que não observa o procedimento previsto em lei, a implicar prejuízo ao atingido, como ocorre no caso de aplicação de multa cominatória (astreinte) para quem a descumpre, é absolutamente nula, ou melhor inexistente, por não fazer o prejudicado parte da relação jurídica processual e sequer ter sido intimado para dela tomar conhecimento e, se o caso, apresentar resposta como terceiro interessado.

Do contrário, haverá um processo anômalo, que subverte todo sistema processual por não estar embasado em princípios e regras constitucionais.

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E, como já disse, a violação ao devido processo legal acarreta a nulidade absoluta de todo ato processual, que nunca se convalida e independe da prova do prejuízo, que é presumido.

Enfim, tudo muito estranho processualmente falando, que deverá ser analisado e referendado, ou não, de preferência pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, que servirá de precedente para decisões futuras, que, a depender do resultado, trará inegável insegurança jurídica por possibilitar a aplicação de sanção processual a quem não é parte no processo e que sequer foi intimado da decisão judicial de forma regular, nos termos da legislação em vigor, impossibilitando a ampla defesa e o contraditório, além de ser criada forma de intimação não prevista em lei, que presume o conhecimento do ato judicial pelas pessoas pelo simples fato de ter sido divulgado pela imprensa e redes sociais.

[1] Art. 5º, LV, da CF: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

[2] Teoria dos princípios, p. 77, 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

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César Dario Mariano da Silva
Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá. Foto: Arquivo pessoal
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