Vários agentes públicos e particulares foram indiciados por terem supostamente praticado crimes contra o estado democrático de direito.
Ao analisar o relatório da Polícia Federal e notícias publicadas, despindo-me ao máximo da ideologia que marca a interpretação das normas jurídicas e de forma eminentemente técnica, sem nenhuma paixão, não é a conclusão a que cheguei.
Por todos os ângulos que se examine a questão, não ocorreu o crime de golpe de estado e nem o de abolição violenta do estado democrático, como amplamente divulgado pela velha mídia tradicional.
Muito embora também seja a conclusão da Polícia Federal em seu relatório, isto é, que realmente houve esses crimes, as provas angariadas ainda devem ser analisadas pelo titular da ação penal pública (MP), que pode ter uma visão diferente.
A questão é puramente dogmática e deve ser apreciada como tal, não devendo o exegeta se deixar levar por questões outras, que não técnicas/jurídicas.
Vamos lá.
Não canso de repetir e vou fazê-lo novamente. Não é infração penal imaginar, pensar ou combinar alguma coisa, mesmo que constitua crime, se não houver o início da execução de um delito (art. 31 do CP). Também não é crime preparar a realização do ilícito penal sem que haja o início de sua execução. Só haverá a tentativa se o sujeito iniciar a execução do crime, que não se consuma por circunstâncias alheias à sua vontade (art. 14, II, do CP).
A exceção é quando a lei expressamente punir os atos preparatórios, como ocorre com os crimes de associação e organização criminosa (art. 288 do CP e art. 2º da Lei 12.850/2013). No entanto, mesmo para estes delitos, há dois requisitos essenciais: a estabilidade e a permanência do grupo, isto é, que a reunião não seja para a prática de crimes momentâneos e determinados, mas para número indeterminado de delitos, e que os integrantes sejam os mesmos ou ao menos a maioria deles.
Meros pensamentos não são puníveis no âmbito penal nem aqui e nem em qualquer país democrático do mundo. Em nosso direito penal, constitui a primeira fase do “iter criminis” (caminho do crime), que são quatro: cogitação, preparação, execução e consumação.
Do mesmo modo, meras bravatas em ambiente privado, como “o fulano de tal merece um tiro na cabeça”; “só matando mesmo” e outras conversas idiotas análogas em que as pessoas nunca executariam o ato e falam simplesmente por falar, muitas vezes por desabafo, raiva, embriaguez ou para demonstrar total descontamento com algo ou alguém, são indiferentes penais por não haver sequer cogitação ou atos preparatórios, mas meros pensamentos desprovidos de qualquer lesão a bem jurídico.
Destarte, mesmo que alguém planeje a prática de um crime específico e pratique atos preparatórios, com ou sem parceiros, só haverá a punição se houver o início da execução dos elementos definidores do tipo penal. Assim, no crime de roubo, v.g., mesmo que os assaltantes planejem a execução do crime, adquiram equipamentos e se desloquem ao destino, se não ocorrer o início dos atos executórios do delito, com o ingresso na agência e ao menos o anúncio do assalto, com o emprego de grave ameaça ou violência contra pessoa, a conduta terá ficado nos atos preparatórios e não haverá crime.
E não é diferente nos crimes de golpe de estado e abolição violenta do estado democrático. O simples pensar ou planejar o cometimento desses delitos sem o início de sua execução, que configura a tentativa exigida pelos tipos penais, é fato atípico penalmente.
Não se pune, portanto, o ajuste, a instigação, o induzimento e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, se não houver o início da execução do crime pelo autor (art. 31 do CP); do mesmo modo que, para a ocorrência da tentativa, é exigido o início da execução do delito (art. 14, II, do CP).
E quando se inicia a execução de um delito?
Há diversas correntes e a que prepondera é a que adota o critério objetivo ou formal. Para esse critério, somente haverá o princípio da execução do crime quando houver o início de uma conduta descrita no verbo do tipo penal. É um critério que parte de um enfoque objetivo ligado ao tipo, ou seja, o sujeito realiza parte do tipo penal para que possa haver o início da execução do delito. Esse critério é o adotado pelo nosso Código Penal, uma vez que somente poderá ocorrer tentativa quando houver atos idôneos que principiem a consumação de um delito previsto em nosso ordenamento jurídico. Assim, v.g., para haver o início da execução do crime de furto, o sujeito deverá começar a subtrair o bem.
Contudo, nada obstante esse critério tenha sido o adotado pelo Código Penal, deve ser complementado. É que em algumas situações há atos que não podem ser desvinculados da prática da conduta típica, embora não haja o início da execução do verbo do tipo. Tomemos por exemplo a situação do indivíduo que ingressa em uma residência para o fim de subtrair bens e é surpreendido pela polícia. Poderá ser-lhe imputada tentativa de furto se ele ainda não iniciou a subtração? Como, no caso, a invasão da residência não pode ser desvinculada do furto, houve o início da execução do crime patrimonial (furto) e ocorreu a tentativa punível.
Saliento que, mesmo iniciada a execução de um delito, a lei ainda dá uma oportunidade para que o agente se arrependa e desista de consumá-lo. Falo da desistência voluntária, instituto previsto no artigo 15 do Código Penal. Cuida-se de causa de exclusão da adequação típica, uma vez que a interrupção voluntária dos atos desfigura a tipicidade da tentativa em relação ao intuito inicialmente concebido. Assim, o agente será responsabilizado apenas pelos atos já praticados.
Dar-se-á a desistência voluntária quando o agente, já tendo iniciado a execução do delito, desiste por sua própria vontade de continuar com a mesma e consumar o delito. Para que haja esse instituto, é preciso que os atos executórios sejam iniciados e o agente voluntariamente os interrompa.
Não se faz necessário que a desistência seja espontânea, basta que seja voluntária. Desistência espontânea é aquela que a ideia de desistir parte do próprio agente; voluntária é a desistência sem coação física ou moral, mesmo que a ideia de desistir parta de outra pessoa ou mesmo de pedido da própria vítima.
Assim, p. ex., se o agente, querendo matar a vítima, atinge-a com o primeiro disparo e, vendo que ela não está mortalmente ferida, deixa de alvejá-la outras vezes, não responderá por tentativa de homicídio, mas pelos atos já praticados (lesões corporais), uma vez que ele podia continuar com a execução e não o fez. Igualmente, aquele que adentra a uma residência para subtrair o televisor, mas desiste voluntariamente de prosseguir com o furto, somente responderá pela invasão de domicílio.
No caso de desistir voluntariamente de consumar o delito e nada tiver ocorrido, isto é, ausente qualquer resultado naturalístico ou jurídico, não responderá por nenhum delito por falta de previsão legal.
Evidente que se o agente desistiu de continuar a execução por circunstâncias alheias à sua vontade, como a chegada da polícia ou por ter sido visto por uma testemunha, cuida-se de crime tentado, anotando que há crimes que não admitem a tentativa, como os unissubsistentes (que se consumam com apenas um ato) e os crimes de atentado (a tentativa já leva à consumação do crime).
Portanto, a diferença entre a desistência voluntária e a tentativa pode ser resumida nos seguintes termos: na desistência voluntária o agente pode continuar com o crime, mas não quer; na tentativa, ele quer continuar com o crime, mas não pode.
Por fim, ocorrerá a consumação quando o fato concreto praticado pelo agente se adequar perfeitamente a uma norma penal incriminadora (art. 14, I, do CP). É a última fase do processo delitivo. O agente imaginou o crime; preparou-o; executou-o e houve a consumação. Exemplo: o agente imagina o delito de homicídio, adquire a arma, aponta-a para o desafeto, aciona o gatilho e atinge o alvo, matando a vítima.
Com efeito, malgrado se idealize, comente e até mesmo planeje um golpe de estado ou a abolição do estado democrático, v.g., se a conduta ficar apenas nos atos preparatórios, não havendo o início de sua execução, e só a cogitação e a preparação, não haverá este delito e nem outro qualquer, exceto se os atos preparatórios forem crime por si mesmos, como quando se adquire armas ou explosivos de forma ilegal, ou quando se constituiu uma organização ou associação criminosa, que, como já visto, exigem, além de outros elementos específicos, que a reunião seja para a prática de indeterminado número de crimes e que seus integrantes sejam os mesmos ou ao menos a maioria deles (estabilidade e permanência).
Punir-se a mera idealização do cometimento de um delito me faz lembrar a “crimideia” (“thinkpol” em novilíngua) e a polícia do pensamento na distopia 1984, de George Orwell. Punia-se o simples pensar, mediante vigilância constante, por todos os meios, para encontrar e eliminar membros da sociedade que simplesmente cogitavam (pensavam) em desafiar o sistema.
E especificamente quanto aos delitos de golpe de estado e abolição violenta do estado democrático?
Por todos os ângulos que se examine a questão, de forma técnica, não ocorreu o crime de golpe de estado, anotando que até o presente momento há apenas a conclusão da Polícia Federal em seu relatório.
A questão é puramente dogmática e deve ser apreciada sem nenhuma ideologia, que marca a interpretação do exegeta e pode levar a equívocos hermenêuticos.
O tipo do artigo 359-M do Código Penal dispõe: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência”.
Nesta conduta o agente pretende, com o emprego de violência contra a pessoa ou grave ameaça, derrubar o governo legitimamente constituído, que me parece ser o Executivo, aquele que efetivamente governa no regime presidencialista.
Não é exigida a deposição do governo, contentando-se a norma com a mera tentativa. Assim, ao empregar violência ou grave ameaça com o propósito de depor o governo legitimamente constituído, mesmo que isso não ocorra, o crime restará consumado. Como se trata de crime de atentado, punindo-se da mesma forma a consumação e a tentativa, não se faz possível o “conatus” (tentativa).
Destarte, não existe tentativa de tentativa de golpe de estado. Ou há a tentativa, e o crime se consuma, ou não há, e não haverá este delito.
O verbo depor implica que o presidente já estivesse empossado e ocupando a presidência quando da conduta. Do contrário, não há deposição. Só se depõe quem já ocupa o cargo, isto é, está empossado.
Do mesmo modo, a norma também fala governo constituído. Não diz governo eleito ou diplomado. Constituído é aquele que já está em funcionamento. Ou seja, só se depõe quem ocupa o cargo de presidente com o governo em funcionamento (constituído).
Lembro que qualquer norma penal incriminadora deve ser interpretada restritivamente e não pode haver analogia contra o réu.
Também é elemento do tipo que tenha sido empregada para a deposição do governo a violência, que é a física contra a pessoa, ou ameaça, que deve ser grave.
Ao que consta, não houve nem violência à pessoa e nem grave ameaça, que são elementos objetivos do tipo sem os quais não haverá este delito.
Além do mais, o modo de execução do delito deve ter o potencial de levar à deposição do governo. Do contrário, se os meios empregados eram absolutamente ineficazes para a finalidade pretendida, haverá crime impossível (art. 17 do CP).
Por fim, como já afirmando, o verbo “tentar” implica o início dos atos executórios, não sendo puníveis as fases da cogitação e nem da preparação deste delito (art. 31 do CP). Se não houve o início dos atos de execução do golpe de estado, não haverá este delito. Assim, o mero pensar (idealização) e os atos de planejamento não são puníveis no nosso direito, exceção feita se caracterizar crime em que se sanciona os atos preparatórios, como o delito de associação criminosa (art. 288 do CP).
Com o devido respeito aos que se posicionam de forma diversa, no meu entender, o delito de abolição violenta do estado democrático também não ocorreu e vou explicar o porquê de forma técnica.
Para tanto, analisarei objetivamente o tipo do artigo 359-L do Código Penal despindo-me ao máximo da ideologia que a todos impregna e sem nenhuma paixão, tão somente de acordo com a dogmática jurídica penal. Diz a norma: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência”.
O verbo deste tipo penal é “tentar”, isto é, realizar a conduta para que advenha a abolição do Estado Democrático de Direito, mesmo que não o consiga. A norma não exige que isso ocorra, mas que a ação seja voltada para esta finalidade.
A ação deve ter por propósito abolir o Estado Democrático de Direito, o que se dá mediante o impedimento ou a restrição do exercício dos poderes constitucionais, quais sejam, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com o emprego de violência ou grave ameaça, que são os modos de execução do delito.
Note-se, assim, que a conduta praticada deve ao menos ter o potencial de produzir o resultado pretendido, embora possa não ocorrer, uma vez que o verbo do tipo é “tentar abolir”. Com isso, malgrado não ocorra a abolição do Estado Democrático de Direito, o que dar-se-ia, em regra, com golpe de estado ou revolução e a imposição de um regime totalitário, é exigido pela norma que um dos Poderes da República seja impedido ou ao menos tenha restringido o regular exercício de suas atribuições ou jurisdição.
Muito embora o ato seja odioso e, acaso consumado, deveria ser severamente punido, saliento que com o sequestro de um Ministro do STF nem se restringe e nem se impede o exercício do Poder Judiciário, não havendo a perfeita adequação desta conduta à norma penal em comento.
E nem Lula e nem Alckmin haviam sido empossados. Assim, seus assassinatos não poderiam levar ao impedimento ou a restrição do exercício dos poderes constitucionais, já que não exerciam nenhum deles. O mero pensar em ato desse tipo é repugnante, mas o direito penal não pune pensamentos e nem o planejamento sem o início da execução do delito. Assim, v.g, se a esposa encomenda a morte do marido, paga o pistoleiro, que apenas embolsa o dinheiro e nada faz, não há como punir a mandante por não ter sido iniciada a execução do homicídio. É o que deixa claro o artigo 31 do Código Penal, ao dispor que: “O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado”.
Além do mais, para a adequação típica, deve ter havido violência à pessoa ou grave ameaça e que a conduta tivesse o potencial de colocar em risco o Estado Democrático de Direito, sendo essa a intenção do agente. E, pelo menos não se noticiou o contrário, não houve nem uma e nem outra conduta deste tipo (violência ou grave ameaça), que são os modos de execução deste delito.
Vou repetir para que fique bem claro. Só com o início da execução do delito é que podemos falar em tentativa. Não se pune nem a cogitação e nem a preparação do crime, exceção feita aos casos expressamente previstos em lei, como a associação criminosa (art. 288 do CPP). Assim, o mero pensar ou planejar o ato não é conduta que encontra adequação típica no tipo penal em comento e nem em outro qualquer que exija o início da execução do crime, como o suposto sequestro e homicídio de um ministro do STF que teria sido planejado.
Lembro, igualmente, que se os meios empregados não poderiam de forma nenhuma alcançar o resultado pretendido, não ocorrerá o crime de abolição violenta do estado democrático por se tratar de crime impossível (art. 17 do CP).
E mesmo que houvesse o início da execução do delito, se o agente desistisse voluntariamente dela, também responderia apenas pelos atos já praticados (art. 15 do CP). Se nada aconteceu, não responderia por nada.
De qualquer sorte, o indiciamento é a mera opinião jurídica da autoridade policial. O Ministério Público, que é o titular da ação penal pública (art. 129, I, da CF), é quem irá analisar as provas produzidas e decidir pela propositura, ou não, da ação penal contra os indiciados.
Não sou eu que estou dizendo isso, mas a legislação, que é assim interpretada há décadas e não pode mudar de uma hora para a outra de acordo com quem consta da capa do processo ou do inquérito.
Estes novos tipos penais, que contêm penas elevadíssimas, devem ser muito bem analisados e empregados, a fim de que não constituam elemento de perseguição política ou ideológica.
Quer saber mais, vide:
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-que-e-uma-organizacao-criminosa/1742539913
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-ausencia-do-justo-e-razoavel/1881073191
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/direito-penal-e-ideologia/1914313177
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