A Nicarágua, maior país da América Central e segundo país mais pobre da América Latina, vive um de seus momentos mais críticos na história.
Segundo o índice de democracias liberais do V-DEM 2023, a Nicarágua está no 176º lugar entre 179 países, pior do que a Venezuela, que ocupa a posição 164º. Ademais, de acordo com o Índice de Percepção da Corrupção 2023, a Nicarágua ocupa a posição 172º, entre 180 países, atrás de países como Afeganistão, Iraque e Irã.
Há 17 anos no governo do país, Ortega é acusado de nepotismo e de instaurar uma ditadura. Todavia, desde 2018, a repressão vem escalando.
Nas eleições de novembro de 2021, os sete candidatos que tentaram desafiar Ortega foram encarcerados alguns meses antes do dia da votação e ficaram presos por quase 02 anos. Por outro lado, para não ficar sem “concorrentes”, Ortega permitiu que 05 candidatos desconhecidos, indicados como colaboradores do governo, continuassem na disputa eleitoral.
Ortega foi reeleito, tendo sua esposa como vice-presidente, com 81,5% de abstenção, segundo dados de um observatório local, e com os principais adversários detidos ou exilados. Dias após, a OEA desconheceu a legitimidade das eleições, com o apoio de 25 de seus 34 membros, entre eles o Brasil. Sete dias depois, o governo de Ortega formalizou o pedido de saída da Nicarágua da OEA que, em geral, leva cerca de dois anos para se concretizar.
Durante esse ínterim, em 2022, o próprio embaixador da Nicarágua na OEA, durante reunião do Conselho Permanente, chamou o governo de ditadura e criticou o regime por violar os direitos humanos. Depois dessa declaração, a Nicarágua fechou a sede da organização no país antes do previsto.
Como o regime de Ortega já havia silenciado os meios de comunicação independentes e as vozes de oposição, a igreja era o único espaço para a livre expressão.
Assim, as celebrações cristãs em espaços públicos foram proibidas, mais de 3.500 ONGs cristãs foram fechadas e mudanças na lei foram usadas para rotular os líderes de igreja como terroristas e conspiradores de golpes. Ademais, igrejas católicas e mais de 256 associações ligadas à igreja evangélica também foram fechadas. Inúmeros bispos e arcebispos também foram expulsos e enviados a Roma.
Em decorrência dessa perseguição, a Nicarágua subiu 20 posições no mapa mundial de perseguição aos cristãos, passando da posição 50º para a 30º, de acordo com a ONG Portas Abertas.
A expulsão de religiosos e o fechamento de instituições cristãs na Nicarágua são críticos não somente do ponto de vista da liberdade religiosa e do efetivo funcionamento da democracia, mas também sob o aspecto social, pois são as igrejas que desempenham um papel fundamental no cuidado do pobre, do órfão, da viúva e dos mais vulneráveis.
Há também compra dos meios de comunicação, retirada do sinal de televisão de canais internacionais, encerramento de associações pró-direitos humanos, restrição do ingresso ao país com objetos que possam registrar imagens e vídeos e perseguição de familiares de opositores ao regime.
Diante disso, em 2023, durante uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, 55 países assinaram uma declaração conjunta para denunciar crimes contra a humanidade na Nicarágua. Países como Estados Unidos, Austrália, Canadá, Alemanha e França assinaram o documento, que foi endossado até mesmo por governos latino-americanos de esquerda, como Chile, Peru e Colômbia. O governo brasileiro optou por não assinar a declaração e propôs um documento que abrisse espaço para diálogo com Ortega, mas os demais países não aceitaram.
No início do mês de setembro desse ano, a Assembleia Nacional, tomada por apoiadores de Ortega, aprovou uma reforma do código penal, que impôs pena de até 30 anos de prisão e o confisco de bens por “crimes contra o Estado” cometidos por qualquer pessoa, em qualquer país do mundo. Ainda, modificou o Código Penal para permitir julgamentos sem a presença do acusado e autorizar a expropriação e o confisco de propriedade de pessoas que vivem fora do país.
Ademais, no dia 11 de setembro, uma mudança na “Lei de Ciberdelitos”, também chamada de “Lei da Mordaça” foi feita. O novo texto pune com prisão de até 5 anos e imposição de multas a quem fizer publicações que causem “alarme, medo, pânico ou ansiedade”, ainda que no exterior.
Desde então, cerca de 5.500 ONGs foram fechadas, bens foram confiscados e vários opositores políticos, incluindo jornalistas, foram deportados e tiveram suas nacionalidades retiradas.
Como se vê, na Nicarágua, a liberdade de opinião não tem mais valor e qualquer crítica ao governo é tida como terrorismo, golpe, incitação ao ódio e conspiração. A liberdade religiosa só pode ser exercida se seus líderes estiverem associados ao regime e obedecerem ao que Ortega propõe, o que, portanto, já não pode mais ser chamado de liberdade.
O Estado é aparelhado e o poder judiciário é instrumentalizado. A corrupção é amplamente abraçada pelo regime, o que fez do país um refúgio para criminosos.
Dois dos exemplos mais recentes e conhecidos são os dos ex-presidentes de El Salvador, Mauricio Funes e Salvador Sánchez Cerén, acusados de corrupção em seu país de origem, que foram acolhidos na Nicarágua. Maurício Funes recebeu a nacionalidade nicaraguense quando fugiu de seu país por ter sido acusado de desvios de mais de 351 milhões de dólares.
Além disso, o ex-presidente do Panamá, Ricardo Martinelli, buscou asilo na embaixada Nicaraguense após ter sido condenado a mais de dez anos de prisão em seu país por lavagem de dinheiro.
A prática de acolher criminosos não é novidade no país. Há tempos, Ortega vem acolhendo guerrilheiros do grupo argentino Montoneros, membros das Farc, da Colômbia, e da organização basca ETA. Pablo Escobar, conhecido traficante da Colômbia, também encontrou refúgio no país à época, além de Alessio Casimirri, da Itália, condenado pelo assassinato do ex-primeiro-ministro italiano Aldo Moro.
A situação na Nicarágua reflete uma crise profunda que ultrapassa os limites da política e da economia, atingindo o cerne das liberdades individuais e dos direitos humanos. A transformação do país em um santuário para a corrupção e a repressão, juntamente com a sistemática violação dos direitos fundamentais, não apenas perpetua a pobreza, mas também ameaça o desenvolvimento democrático da região e a integridade das instituições.
Assim, é imperativo que a comunidade internacional amplie seus esforços para que a democracia e o respeito aos direitos humanos na Nicarágua sejam assegurados, a fim de que o regime não continue a desmantelar as estruturas de justiça e liberdade. Somente através de uma ação coordenada e decisiva será possível oferecer um futuro mais justo e digno para o povo nicaraguense.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
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