A primeira sessão de julgamento da tese de "marco temporal" no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quarta-feira, 1º, foi marcada pelas sustentações orais de representantes das partes envolvidas no processo. Representante do governo, a Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu não apenas o marco temporal, como também o projeto de lei (PL) 490, em tramitação na Câmara dos Deputados, e um parecer formulado pela AGU, em 2017, cujo teor propôs a aplicação da tese em processos de demarcação. O advogado-geral, Bruno Bianco Leal, argumentou que o não reconhecimento de data para estabelecer as demarcações pode gerar insegurança jurídica e atentar contra a paz social.
O PL 490 trata da mesma matéria analisada pelo STF e ainda abre margem para iniciativas do agronegócio, da mineração e da infraestrutura explorarem as terras indígenas. Já o parecer mencionado pelo AGU, é um argumento em defesa do marco temporal que se baseia no julgamento do caso Raposa Serra do Sol - amplamente citado no julgamento de hoje -, que decidiu pela demarcação da terra indígena situada no Estado de Roraima.
Na ocasião, o ex-ministro Ayres Britto introduziu a tese de marco temporal durante a sustentação do seu voto, o que passou a ser usado por defensores dos interesses agropecuaristas em disputas contra indígenas que exigiam a demarcação de territórios tradicionais. "O revolvimento das salvaguardas institucionais firmadas no caso Raposa Serra do Sol tem o potencial de gerar insegurança jurídica e ainda maior instabilidade nos processos demarcatórios. É nesse sentido que a União defende que as salvaguardas institucionais sejam reafirmadas em prol da pacificação social", disse Bianco.
Em maio de 2020, o ministro Edson Fachin, relator do caso em análise no Supremo, atendeu ao pedido do povo Xokleng e suspendeu os efeitos do parecer da AGU até que o recurso extraordinário sob análise do plenário da Corte fosse julgado. O ministro alegou ser necessário desconsiderar o contexto da aplicação da tese de marco temporal.
O recurso extraordinário em análise no Supremo possui caráter de repercussão geral, portanto, a decisão que prevalecer deverá, necessariamente, ser aplicada em situações similares. O caso concreto em julgamento trata da Reserva Indígena de Ibirama-La Klanõ, sob tutela dos povos Xokleng, Kaigang e Guarani, mas que é reivindicada pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, antiga Fundação Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente, para realização do processo da reintegração de posse das terras.
Para os defensores do marco temporal, os povos originários só podem reivindicar a demarcação de territórios que comprovadamente ocupavam na data em que foi promulgada a Constituição Federal de 1988, em 5 de outubro daquele. Na impossibilidade de provar a posse das terras, os indígenas poderão ser despejados e impedidos de solicitar novas demarcações. Indigenistas e lideranças representantes dos povos originários rechaçam essa possibilidade.
"É notório que o marco temporal figura como um dos principais trunfos para sobrepor interesses individuais, políticos e econômicos sobre os direitos fundamentais, coletivos e constitucionais dos povos indígenas e também da própria União. Ou seja, o marco temporal não goza de natureza jurídico constitucional, pois vai de encontro a pilares que são caros ao nosso estado democrático de direito", disse Samara Carvalho Santos, representante dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia.
"O mais gravoso dessa discussão é que aqueles que defendem critérios subjetivos e limitadores para o reconhecimento dos nossos direitos territoriais, tanto no Legislativo como no Executiva, e também aqueles que trazem suas demandas perante o Judiciário, com base no marco temporal, assim o fazem dolosamente", completou.
O relator do caso já manifestou em seu voto que a aplicação da tese de marco temporal promove progressivo "etnocídio" das comunidades indígenas e de suas formas de reprodução cultural. Com o mesmo entendimento apresentado pelo ministros Fachin, o advogado Eloy Terena, representante da Apib no julgamento, argumenta que a Constituição Federal não trabalha com critérios de temporalidade, mas sim de tradicionalidade.
"É preciso perguntar: se determinada comunidade não estava em sua terra na data de 5 de outubro, onde elas estavam? Quem as despejou dali? Basta lembrar que estávamos saindo do período da ditadura, onde muitas comunidades foram despejadas de suas terras. Ora com apoio, ora com aval do próprio Estado e seus agentes. Portanto, adotar o marco temporal é ignorar todas as violações a que os indígenas foram e estão submetidos", afirmou.
Ao todo, estão inscritos 37 amicus curiae - nome dado aos amigos da Corte - para se manifestar e ajudar a fundamentar os votos dos ministros, além da AGU e da Procuradoria-Geral da República (PGR). A longa fila, porém, inviabilizou o encerramento do caso ainda hoje. Somente 21 advogados conseguiram se pronunciar até o momento, o que fará com que nova sessão seja realizada nesta quinta-feira, 2.
Ao fim das manifestações, Edson Fachin deve proferir novamente seu voto - apresentado no plenário virtual da Corte - para que então os outros magistrados possam expor seus entendimentos sobre o caso. O andamento devagar do processo já desmobilizou parte dos 6 mil indígenas acampados há duas semanas próximos à Esplanada dos Ministérios, enquanto aguardam os rumos do processo.
O Estadão apurou que a expectativa dos indígenas no acampamento "Luta Pela Vida", organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), deve ser frustrada por um pedido de suspensão do julgamento a ser apresentado por algum dos ministros. O entendimento de parte dos integrantes do Supremo é de que o momento do País é de tensão social e que a decisão, seja ela qual for, pode estimular reações das partes envolvidas.
Enquanto não chega a vez dos ministros se manifestaram, o representante do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, o procurador-geral do Estado Alisson de Bom de Souza reiterou os argumentos defendidos pela AGU desde 2017. Segundo o PGE, a derrubada da tese do marco temporal pelo Supremo pode colidir com o direito à propriedade privada.
"Não se pode violar outros direitos fundamentais igualmente relevantes à sociedade brasileira e decorrentes da Constituição", afirmou. "Estar-se-á concluindo por vias transversas que há um direito originário indígena superior aos demais direitos fundamentais".
Já o representante dos Xokleng, Rafael Modesto dos Santos, argumentou que "o marco temporal parte de um negacionismo" dos conhecimentos produzidos pelas ciências antropológicas, que atestam o processo de violação de direitos dos povos originários. Para Santos, a Constituição Federal não dá margem para interpretações restritivas: "não cabe nenhum marco temporal, por ele legalizaria todo o tipo de ilícito ocorrido até 1988".
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