É bonito pensar sobre os instrumentos da memória: fotografias e vídeos, documentos e arquivos, músicas e cartas, embora nossa mente não precise de muitos recursos para lembrar do que quer, estes são os meios principais para guardarmos o tempo – nossa maneira humana de driblar seu incontestável passar por nós.
Esses instrumentos, que são grandes aliados do conhecimento histórico, são também parceiros de nossa nostalgia e saudosa lembrança. Afinal, quantos de nós gostaríamos de reviver o momento capturado numa fotografia ou vídeo, mais do que retornar ao local físico em si? Rubem Alves dizia que, se amamos um lugar, não devemos “fazer a besteira” de voltar, pois o que buscamos – o tempo, o momento vivido – já não está mais lá[1]. Por isso, tais registros tornam-se tão valiosos: eles nos permitem guardar, em papel, filme, onde quer que seja, fragmentos de um tempo que não volta mais; tempos de memória coletiva que estão sempre se refazendo a cada dia, e que poderiam nos escapar, não fosse o trabalho fundamental dos arquivos, museus e instituições de preservação histórica.
Enquanto assistia os vídeos da reabertura da Catedral de Notre-Dame em Paris no dia 7 de dezembro[2], depois de um incêndio devastador que encerrou suas atividades e visitações por mais de cinco anos, pensava muito sobre nossos símbolos históricos - o que temos de concreto para contar nossa história às futuras gerações? Enquanto Notre-Dame permaneceu fechada, calou-se um pouco a história da cidade de Paris, da França, Europa e, de certa forma, de todos nós. Da mesma maneira, cada vez que perdemos quaisquer de nossos importantes registros históricos, calamos nosso passado também. Foi assim com o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, que passou por episódio semelhante, sem, porém, desfecho igualmente positivo ao da Catedral: de um acervo de mais de 20 milhões de itens, quase tudo se perdeu.
Quando lidamos com arquivos e símbolos históricos, enfrentamos sempre o potencial de perdas irreparáveis. A passagem do tempo apenas intensifica o valor do trabalho de quem se dedica a essa missão - arquivistas, historiadores e gestores documentais que entendem que guardar o tempo é, também, preservar nossa identidade.
Quando assumi a Secretaria Municipal de Gestão, logo senti o peso da responsabilidade de guardar a memória existente no Arquivo Municipal de São Paulo, também passei a compreender melhor a relevância dos servidores públicos, que em seu zelo ao longo de anos, demonstram intuir que uma imensidão de 20 milhões de processos físicos abriga miríades de tesouros. Embora nosso foco seja mais administrativo e burocrático, lidando com milhões de processos, mapas, plantas e documentos, reconhecemos plenamente o valor de guardar o tempo, nossa história conhecida e nosso futuro anunciado.
Desde sua criação em 1913, o Arquivo Municipal de São Paulo cumpre essa função essencial de preservação. Desafios históricos marcaram sua trajetória, como o Distúrbio Urbano de 1947, que colocou em risco os processos armazenados na então sede da Rua Líbero Badaró, e o esforço pioneiro de informatização iniciado na década de 1970. Mais de 100 anos após sua fundação, mediante publicação de Decreto que estabelece o Sistema de Arquivos do Município de São Paulo em 2017[3], ficaram estabelecidos os três pilares da gestão documental: o Arquivo Público como órgão central, as unidades de gestão documental dos órgãos e entidades municipais e o Arquivo Histórico Municipal, da Secretaria Municipal de Cultura.
Hoje, aos 111 anos, o agora chamado Arquivo Público Municipal Jornalista Paulo Roberto Dutra, tem também como importante atribuição a publicação do Diário Oficial da Cidade e sedimenta sua importância com o trabalho de profissionais dedicados e investimentos inéditos, a exemplo da recente abertura de licitação que permitirá o apoio com ferramentas modernas e necessárias para o tratamento documental de seus arquivos, um marco na história da administração pública de São Paulo.
Avanços assim refletem uma crescente valorização de iniciativas que muitas vezes perdiam espaço por não terem apelo político. Gestores municipais têm reconhecido que os arquivos públicos são os alicerces da nossa identidade coletiva. Cada decisão administrativa, cada ato oficial, cada relato pessoal arquivado compõe um mosaico que ajuda a explicar quem somos enquanto sociedade e para onde estamos indo.
Muito além de meros registros factuais, esses documentos guardam emoções, valores e contextos, revelando a complexidade humana. Assim, nós que guardamos o tempo, tornamo-nos também contadores de histórias. A cada documento preservado, temos a chance de narrar as vitórias e os desafios, os avanços e os erros, para que sirvam de aprendizado e inspiração para as gerações futuras.
Como dizia filósofo e poeta espanhol George Santayana, “[a]queles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”[4]. Guardar o tempo, portanto, é também um ato de esperança: um compromisso com o futuro, feito por meio do respeito e da valorização do passado; é reconhecer o papel indispensável que os arquivos desempenham na construção de uma sociedade que valoriza sua trajetória e projeta seu futuro com consciência. Afinal, guardar o tempo é, antes de tudo, uma forma de cuidar daquilo que somos. Que o novo ano nos permita tempo para guardar o tempo.
[1] Rubem Alves, o Professor de Espantos. Dir. Dulce Queiroz. Brasília: TV Câmara, 2017. Documentário, disponível em YouTube.
[2] " Notre-Dame de Paris: The reopening ceremony as it happened”. Le Monde. Paris, 7 dez. 2024. Disponível em: https://www.lemonde.fr. Acesso em: 8 dez. 2024.
[3] SÃO PAULO. Decreto nº 57.783, de 13 de julho de 2017. Dispõe sobre a Política de Gestão Documental e o Sistema de Arquivos do Município de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de São Paulo, São Paulo, 14 jul. 2017. Disponível em: https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=/2017/diario%2520oficial%2520cidade%2520de%2520sao%2520paulo/julho/14/pag_0001_7OD4A5417HNJNe5K3AAQR99HLK5.pdf&pagina=1&data=14/07/2017&caderno=Diário%20Oficial%20Cidade%20de%20São%20Paulo&paginaordenacao=100001. Acesso em: 8 dez. 2024.
[4] SANTAYANA, George. The Life of Reason: Introduction and Reason in Common Sense. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1905, p. 172.
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