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Opinião|O acesso das mulheres à renda é suficiente para reduzir a violência doméstica?

A violência doméstica contra mulheres se beneficia de diversas desigualdades e vulnerabilidades, entre elas, a racial e a de renda, mas elas não dão conta de outras disparidades de poder. Não existe “empoderamento” sem mudanças profundas nas estruturas culturais, morais e sociais que impactam as relações familiares entre homens e mulheres

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convidado
Por Beatriz Accioly

Trabalhando com a temática da violência doméstica no Brasil, com frequência escuto sugestões de que a autonomia financeira e o acesso à renda seriam as melhores soluções para enfrentar o problema. Essa visão defende que o “empoderamento econômico” deveria ser tratado como uma das estratégias centrais para reduzir e prevenir a violência doméstica, uma vez que se presume que relacionamentos violentos se devem à dependência financeira. Por consequência, ações eficazes deveriam aumentar as oportunidades no mercado de trabalho. E muita gente conhece uma história - ou até mais - que se enquadra nesta narrativa. Ao mesmo tempo, também não é raro se tornarem públicos casos de mulheres com alta educação formal e financeiramente independentes, ou mesmo as principais responsáveis financeiras pela família, que não foram imunes à violência doméstica.

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Quais são os possíveis efeitos do acesso à renda própria e à autonomia financeira na redução da violência? Há mesmo uma correspondência entre dependência econômica e violência doméstica?

De maneira geral, entre estudiosos/as do tema, há duas grandes apostas. Por um lado, alguns modelos teóricos argumentam que quando mulheres passam a alcançar autonomia financeira, elas adquirem uma maior possibilidade de negociar dentro da estrutura familiar, o que, por sua vez, reduziria a violência por parte do parceiro. Por outro, há o contraponto de que, diante de uma maior autonomia feminina, a reação masculina pode envolver o aumento da violência na direção de fortalecer normas tradicionais, com o homem visando retomar sua autoridade sobre a companheira.

As evidências são ambivalentes quanto ao papel dos diferentes fatores econômicos na determinação do risco das mulheres. Há diversos casos em que a renda ou a autonomia financeira podem ter efeitos inversos daqueles que esperamos, inclusive aumentando a violência.

Um estudo conduzido na Tanzânia (2019), concluiu que quando as mulheres contribuem mais do que os seus companheiros para a renda da família, o risco de violência doméstica se torna mais alto. A pobreza e as tensões oriundas da sensação de fracasso em prover pelas famílias por parte dos homens são fatores que exponenciam essa associação.

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Algo semelhante apareceu em um estudo feito na Austrália (2023), demonstrou que as mulheres que ganham mais do que os seus companheiros estão sujeitas a um aumento de 33% na violência doméstica. No caso australiano, chama atenção, que o aumento significativo da possibilidade de episódios de violência doméstica ocorre justamente a partir do momento em que as mulheres passam a ganhar mais que os seus parceiros.

Evidências parecidas também chegam da Suécia (2019), em que se concluiu que o aumento dos rendimentos financeiros das mulheres também aumentava o risco de comportamentos violentos e perigosos por parte dos companheiros, entre eles, episódios de agressão física. Segundo a pesquisadora, a melhoria da posição econômica das mulheres pode desencadear uma resposta negativa por parte dos homens, “mesmo em uma Suécia que se presume equitativa”.

Já no Brasil, um levantamento conduzido pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (2019), apontou que ter acesso à renda própria não seria garantia de proteção às mulheres contra a violência doméstica. O estudo mostrou que o índice de violência contra mulheres que integram a população economicamente ativa (52,2%) é praticamente o dobro do registrado por aquelas que não compõem o mercado de trabalho (24,9%). Segundo o IPEA, os dados mostram que a presença feminina no mercado de trabalho pode aumentar as tensões entre o casal, resultando em violência.

Também por aqui, um estudo de 2014 se dedicou a entender se mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família vivenciaram uma redução de situações de violência doméstica devido o acesso à renda. Foi encontrado, entretanto, um cenário inverso. Diante do acesso ao benefício de transferência de renda do governo, houve um aumento de 7,67% nos casos de violência doméstica. E, quanto menor a renda familiar, maior a probabilidade de o homem cometer a violência com o objetivo de extrair os recursos da parceira.

Os estudos estrangeiros e brasileiros não se opõem à uma maior liberdade financeira feminina ou que se realizem esforços em torno da melhoria no acesso à renda pelas mulheres, mas salientam que acesso à renda própria e suposta autonomia sozinhos não são suficientes para reduzir ou erradicar o problema da violência doméstica. Há limites nos argumentos que associam fatores somente econômicos a um fenômeno que é alicerçado em contextos morais, culturais, sociais e emocionais.

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A violência doméstica contra mulheres se beneficia de diversas desigualdades e vulnerabilidades, entre elas, a racial e a de renda, mas elas não dão conta de outras disparidades de poder. Por isso, toda e qualquer intervenção que busque mais oportunidades econômicas para as mulheres, deve ter em mente a necessidade de abordar, concomitantemente, expectativas de feminilidade e masculinidade, e seus mecanismos de controle. Não existe “empoderamento” sem mudanças profundas nas estruturas culturais, morais e sociais que impactam as relações familiares entre homens e mulheres.

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Beatriz Accioly
Coordenadora de Parcerias do Instituto Avon. Foto: Arquivo pessoal
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