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Opinião|O Auto da Repugnante

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convidado
Por Eric Cwajgenbaum
Atualização:

Tio Paulo, tal como Chicó anunciava sua própria morte-não-morte, já cumpriu sua sentença.

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“Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre[1].”.

A sobrinha não, mas ao que tudo indica vai cumprir uma sentença.

Mas acalmem-se todos: ela está presa! Não apresenta mais qualquer perigo a ninguém, nem mesmo ao vulnerável sistema bancário.

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Passarei ao largo de qualquer tese defensiva, missão sempre desafiadora confiada à quem vier a exercer sua Defesa Técnica a partir da provável acusação que algum estagiário já esteja incumbido de minutar.

O meu nó é o nosso recrudescimento na capacidade de enxergar o humano.

Marvin nos remete a uma memória afetiva pelas vozes dos Titãs, mas foi lançada nos anos 70 por Ronald Dunbar e General Johnson, escrita a partir da perseverança do sujeito diante de uma vida miserável e miserável em cada perspectiva daquilo que é a sua vida.

E todo dia antes do sol sair, eu

Trabalhava sem me distrair

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As vezes acho que não vai dar pé

Não deu pé e nem era para dar.

Apesar de nas fotos parecer uma senhora, a autuada tem 42 anos:

Afirma que possui uma filha de 14 anos, de nome Beatriz, portadora de deficiência, ainda sem diagnóstico conclusivo. Afirma que a adolescente tem pai registrado. Acrescenta que mora em companhia de quatro filhos de 28, 27, 17 e 14 anos e o tio mencionado nesse procedimento. Sustenta que a filha Beatriz estava em companhia do irmão Lucas, de 27 anos.[2]

Quem passou pela experiência de ver esta mulher falando ou lê o que foi para a ata da audiência de custódia que terminou com sua prisão preventiva, tem basicamente duas opções, não sei ao certo se racionais ou emocionais: ou é tocado pelo que há de humano ali ou não é tocado.

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Para que fique claro, em termos simplórios, uma prisão preventiva é decretada quando o julgador enxerga estar diante de algo que resumimos em uma única expressão em latim, periculum libertatis.

Prefiro a brasileira e nada apegada ao conceito acadêmico que, apesar de lhe destinar uma frase longa, ignora a semântica: perigo da liberdade.

Vamos então ao perigo que essa jovem senhora apresenta.

A mais nova de seus quatro filhos tem quatorze anos de idade – a mesma idade que a autuada tinha quanto teve o seu primeiro – é portadora de deficiência ainda sem diagnóstico conclusivo. Sabe-se lá se aquela fortuna do Tio Paulo seria realmente destinada a uma obra que ele queria ou às caríssimas investigações genéticas que talvez iluminassem também a hereditariedade materna de alguma síndrome.

Se você leitor me achou preconceituoso, aqui vai o primeiro carimbo no passaporte da autuada:

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A possibilidade de já ter sido levado morto torna a ação mais repugnante e macabra.

Mais um detalhe interesse e que não me sai da cabeça é quem vai exercer o direito de representação criminal, ato formal necessário para, na qualidade de vítima, dar movimento ao processo quando se trata de estelionato. A família da vítima ou a instituição bancária que entregaria o dinheiro se o morto assinasse?

Evitarei a fadiga ao deliberadamente ignorar os outros artigos, vilipendiados do Código Penal.

Enfim... se você não sabe o que é bater perna em shopping atrás de consignado, se não sabe o que é pegar o tio que você cuida lá na UPA de Bangú, se você não sabe o que é um pobre-moribundo, seu barulho, seu cheiro, sua cor, sua temperatura, qualquer laudo serve para ignorar o humano.

Chego até aqui sem citar seu nome, pois do nome surge a capa do processo, nele e em nome dele coisas são processadas e lá estão os Autos.

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Quem sabe o humano surja pela inserção da imagem dela na capa dos Autos, tal como trazida a nós por esse espetáculo de barbárie e sob o título de sua primeira sentença, processual e pública: Repugnante.

[1] O Auto da Compadecida

[2] Trecho extraído dos autos, públicos, do processo de nº 0808879-88.2024.8.19.0204 – TJ/RJ.

Convidado deste artigo

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Eric Cwajgenbaum
Advogado criminalista. Foto: Arquivo pessoal
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