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O crime de insider trading: um estranho conhecido

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Por Rogério Taffarello e Philippe Nascimento
Rogério Taffarello e Philippe Nascimento. Foto: DIVULGAÇÃO

De tempos em tempos, e cada vez com mais frequência, a imprensa noticia a possível ocorrência de insider trading, e sua investigação pelas autoridades competentes, Comissão de Valores Mobiliários e Ministério Público Federal, em episódios que abalam o mercado de capitais com especial magnitude.

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Ainda que tal prática não ocorra somente em casos midiáticos, já que muitas vezes sua frequência - e "sucesso" - reside, justamente, na clandestinidade conferida pela impessoalidade das operações no mercado de capitais, e em sua difícil detecção, são os casos que vêm a público que nos fazem lembrar deste comportamento e, principalmente, buscar sua apuração e punição.

A existência de informações relevantes e não-públicas que podem influir - e de fato influem - na precificação de valores mobiliários de uma companhia e nas decisões dos investidores do mercado; e a utilização indevida dessas informações, antes de se tornarem públicas, para negociação de valores mobiliários, compõem o núcleo central do que é considerado insider trading, conduta considerada ilícita em qualquer país com mercado de capitais minimamente desenvolvido, globalizado e com regras que visam seu correto funcionamento, com as devidas ressalvas de cada ordenamento jurídico.

No Brasil, a prática de insider trading é crime desde 2001, além de ser, também, ilícito administrativo no âmbito da regulação do mercado de valores mobiliários - razão pela qual a CVM possui poderes normativos, fiscalizadores e sancionadores sobre a conduta.

Originalmente, sob forte influência da legislação norteamericana e da interpretação jurisprudencial da Suprema Corte dos EUA sobre o tema, a redação do crime de insider trading restringia sua incidência somente a casos em que a utilização indevida de informação relevante e não-pública na negociação de valores mobiliários, com a finalidade obter vantagem econômica - obtenção de lucro ou evitação de prejuízo -, era praticada por quem possuía dever de sigilo sobre tal informação. Esta seria uma leitura que, em tese, centraria o fundamento da punição ao insider trading na violação de deveres fiduciários dos administradores da companhia emissora e de deveres de sigilo criados a partir desta relação fiduciária, como no caso de advogados e auditores.

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Mas, em 2017, a definição do crime de insider trading foi sensivelmente alterada, deixando de exigir, para sua configuração, a violação de um dever de sigilo sobre a informação utilizada para negociar valores mobiliários. Desde então, pela lei, qualquer pessoa que negocia valores mobiliários utilizando informação relevante e não-pública, com o fim de obter vantagem, pode praticar o delito.

Com este alargamento das hipóteses de punição, o crime de insider trading se aproximou dos modelos atualmente vigentes em países da Europa, que sofreram atualizações legislativas comunitárias sobre o tema em 2003 e 2014. Tais legislações fundamentariam a punição ao insider trading a partir de uma abordagem econômica, que visa proteger a capacidade funcional do mercado de capitais dos efeitos nocivos causados por esse comportamento.

Ocorre que, apesar de existir desde 2001, e de cada vez mais ser objeto de notícias, não é comum lidar no dia a dia da prática forense com discussões, investigações e processos em torno do crime de insider trading no Brasil.

É necessária, portanto, especial atenção - e cautela - dos órgãos de persecução penal, do Poder Judiciário e, inclusive, de advogados, para lidar com casos envolvendo o tema. Muitas vezes não se estará diante de uma discussão exclusivamente jurídica e penal, sendo importante o domínio sobre o próprio funcionamento do mercado de capitais, sua dinâmica e particularidades, algo ainda não tão rotineiro na seara criminal. Além disso, a configuração do crime de insider trading está estreitamente vinculada à esfera administrativa-reguladora de competência da CVM, órgão técnico-jurídico para fiscalização e sanção da conduta, em um primeiro momento. Assim, deve haver uma atuação coordenada entre as duas esferas - penal e administrativa.

São muitas questões a serem analisadas em um caso concreto. Teria existido, de fato, uma informação privilegiada (relevante e não-pública) razoavelmente precisa e com capacidade de influir na cotação dos valores mobiliários e nas decisões de seus investidores no momento da negociação dos papéis? As operações teriam sido realizadas em razão do conhecimento desta informação concreta e com a intenção de obter vantagem indevida? Ou teria se tratado de especulação sobre um cenário incerto, mas possível, incapaz de constituir uma informação que deveria ser disponibilizada ao mercado segundo as regras de disclosure da CVM? Ainda, as operações teriam sido previamente submetidas e, eventualmente, aprovadas por órgãos de compliance da companhia, corretoras ou outros participantes do mercado que, de alguma forma, têm relação com eventuais negociações realizadas?

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Estes são apenas alguns pontos de partida para uma apuração diante de uma suspeita de insider trading. Além deles, muitas outras questões devem ser enfrentadas. Espera-se, assim, que os episódios de tempos em tempos noticiados pela imprensa sirvam não apenas para nos fazer lembrar a existência, na lei, do crime de insider trading, mas que sirvam, principalmente, para o amadurecimento das discussões jurídico-penais em torno deste tema ainda tão pouco enfrentado por juízes e tribunais, respeitando-se, sempre, a presunção de inocência até eventual comprovação de culpa, o devido processo legal e as demais garantias individuais.

*Rogério Taffarello é professor da pós-graduação em Direito Penal Econômico da FGV-SP e sócio da área de Penal Empresarial do Mattos Filho

*Philippe Nascimento é mestre e doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP e advogado da área de Penal Empresarial do Mattos Filho

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