Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Opinião | O descaso com varas criminais estaduais

Também não adianta fazer mutirões, pois o problema é estrutural e não pontual. É preciso que haja uma triagem de processos, além da simplificação das audiências, as quais não podem ser apenas burocráticas para ouvir o que já se tem nos autos e nem foi questionado pela Defesa

PUBLICIDADE

PUBLICIDADE

convidado
Por Andre Luis Alves de Melo

Apesar de o tema segurança pública ser prioritário para a população jurídica, porém no meio jurídico as varas criminais, principalmente estaduais são tratadas em segundo plano e com assédio moral. Primeiramente porque são em um número bem menor em relação às varas de natureza cível, o que provoca uma sobrecarga de trabalho desarrazoada e com fuga de profissionais sempre que possível, e ainda um risco maior no exercício do trabalho.

PUBLICIDADE

Além disso, a criatividade do Legislador a todo momento aprova lei com novos tipos penais, mas com penas pequenas, o que aumenta o serviço, no entanto, gera pouco resultado, pois pena pequena geralmente é regime aberto (até 04 anos) e como não há albergues, acaba sendo cumprimento em regime domiciliar e sem fiscalização, pois não existe tornozeleira suficiente. E a Polícia Penal alega que não é atribuição sua fiscalizar fora dos presídios, apesar de ser Polícia Penal, e não Polícia Prisional.

A situação é tão paradoxal que condenados preferem regime domiciliar aberto do que as penas alternativas como prestação de serviço.

Nesse sentido de caos na área penal, a jurisprudência é benevolente na execução penal, transformando o criminoso condenado em vítima da sociedade e um “reeducando” em vez de apenado/condenado, o qual não pode ser punido, mas deve ser auxiliado, apesar de não existir este termo “reeducando” na lei, foi criado por setores ideológicos nos Tribunais e hoje usado com naturalidade.

Enquanto nas varas cíveis estaduais retiraram temas (desjudicialização) como divórcio consensual, retificação de nomes, usucapião consensual, maioria das execuções fiscais, inventário, dpvat, ações previdenciárias, acidentes de trabalho, e ainda permitem que a maioria das audiências sejam feitas por assessores em centrais de conciliação, mas o número de varas cíveis não diminuiu; já nas varas Criminais aumentam-se o trabalho com relatórios burocráticos, audiências de custódias, audiências filmadas e com alto grau de exposição, criação de mais tipos penais, audiências preliminares, necessidade de audiências para ouvir o que os policiais já constaram nos documentos, o que gera a necessidade de audiências diariamente e várias, e sem possibilidade de se delegar para assessores em centrais de conciliação, e ainda querem exigir audiências presenciais, ou seja, um retorno ao “velho anormal” e anulando o “novo normal”.

Publicidade

No entanto, não se aumenta o número de varas criminais, o que nem precisa de ampliar despesa, pois basta transformar varas cíveis ou do Juizado Especial em varas criminais, em razão da redução de serviço para as primeiras, e que seria ainda menor volume de processo cível com um controle maior da justiça gratuita, o que estimularia a conciliação extrajudicial.

Estas burocracias sobrecarregam as varas criminais, e até beneficiam a Defesa, pois aumenta o mercado de trabalho. Sendo que em geral a Promotoria arquiva em torno de 40% das investigações, e neste caso, não tem a atuação da Defesa, seja pública ou privada. Portanto, sobram 60% dos processos que terão que ser iniciados por denúncia da Promotoria e terão necessidade de defesa, pois no Brasil ainda vigora o mito da obrigatoriedade da ação penal. E destes 60%, em geral, metade será defendido pela Defesa Estatal e a outra metade pela Defesa privada, a qual divide entre os vários advogados privados.

Logo, a sobrecarga maior é na Promotoria e no Judiciário, pois Juiz e Promotor atuaria em 100% dos casos criminais, inclusive nos arquivamentos. Enquanto do acervo total de uma vara criminal, em geral, a Defesa pública atua em 30% e a particular em 30%, afinal, na fase de Inquérito Policial não há atuação da Defesa, salvo raríssimas exceções.

No caso das Promotorias o legislador praticamente sufocou as Promotorias com os Acordos de Não Persecução Penal (ANPP), notificações, audiências extrajudiciais, criando uma nova fase processual em que se tem que procurar e implorar para o investigado fazer acordo, em vez de se entender que cabe a ele procurar a Promotoria para informar o seu desejo.

E ainda não se aumentou a estrutura de pessoal da Promotoria para fazer intimações, pois não tem Oficiais de Justiça no Ministério Público, nem previsão e nomear Advogado Dativo e fixar honorários, e ainda cumulando o serviço extrajudicial com as pautas de audiências judiciais.

Publicidade

Além disso, a Lei estabeleceu que cabe ao Ministério Público efetivar as intimações quando ordenar arquivamento de Inquéritos Policiais, mas não se esclareceu bem quando seria “ordenar”, pois se já vem com arquivamento da Delegacia não estaria o Ministério Público ordenando, e se tem a Promotoria que solicitar o arquivamento para o Judiciário também não estaria ordenando. E, como dito alhures, nem tem Oficial de Justiça para fazer intimações sobre os arquivamentos, o que pode desestimular arquivamentos e estimular ajuizamento de ação, pois a intimação seria através do Judiciário.

PUBLICIDADE

No entanto, como o que tem prevalecido é o ódio ao Ministério Público, pois expôs corrupção em alguns setores políticos e jurídicos, a meta é sufocar a Instituição até a morte, ou passar atribuições do Ministério Público para outras Instituições que sonham em ser Ministério Público. Afinal, uma vez que não se pode extinguir pela via constitucional, ao menos por enquanto.

O descaso com varas criminais é tão natural, que quando se fala em segurança pública, verbas, estruturação, nada se fala em Varas Criminais e Promotorias Criminais, a preocupação fica mais focada no bem-estar do réu e da Defesa, até mesmo a vítima, 99% da população, é esquecida, mas jamais há uma política pública com a estrutura de trabalho das Varas Criminais.

O número de prescrições é enorme, mas nem há estatística oficial sobre o tema, pois os órgãos de cúpula estão muito focados em saber o sexo e a cor dos julgadores, e não têm tempo para avaliar a situação das varas criminais, onde é comum audiências com réus soltos serem marcadas para mais de 05 anos para a frente.

Temos apenas 500 mil presos de fato, o resto é prisão fake News, ou seja, domiciliar, até regime semiaberto já se está sendo por regime domiciliar, mas nada divulgam em dados consolidados, e quando se solicita os dados no órgão de cúpula, informam que cabe ao cidadão analisar os dados dispersos.

Publicidade

Como são 200 milhões de brasileiros, em média, então ainda que fosse um milhão de presos, o que não é realmente, mas seria apenas 0,5% da população presa, sendo que o ideal é 3% da população presa, ou seja, até 3 milhões de presos está dentro da normalidade, o que talvez falte é vaga, mas isto pode ser resolvido com políticas de planejamento.

Outro aspecto é que município que tem Guarda Municipal tem que ter contraprestação de apoiar investindo em Centrais de Pena alternativa, albergues e até mesmo ajudando financeiramente o Estado na seara prisional, pois não pode o Município apenas desejar prender, sem o ônus do custo prisional.

E como temos quase 10% milhões de processos penais e Inquéritos Policiais ativos, sem computar a “cifra negra”, quantidade de crimes que nem são comunicados aos órgãos de investigação, a qual é de 50%, conforme dados do IBGE, então o número de presos não representa, nem 10% do volume de feitos criminais. Hoje, em torno apenas 30% dos condenados cumprem pena de prisão, os demais 70% cumprem penas alternativas, mas ainda prevalece o discurso garantista de coitadismo do criminoso, perseguido pelo Estado, vítima da opressão social, ou seja, bem ligado à determinada ideologia política,

Lado outro, apenas processos com réus presos tramitam rapidamente, independente da gravidade. Se for réu solto, pode ser um latrocínio, e a lentidão é exorbitante, inclusive com risco de prescrição, como já ocorreu. E isso gera um paradoxo, pois apenas quando preso processo anda rapidamente, então acusação tem que focar na prisão, e defesa apenas na soltura, e ambos não focam na produção probatória. Apesar de o art. 394-A do CPP falar em prioridade para crimes hediondos, sem diferenciar entre réu solto ou preso, isso é letra morta, apenas processo com réus presos tramitam com prioridade, ainda que seja apenas um furto de chocolate.

Como Juiz e Promotor são as únicas carreiras que não podem se candidatar, sem perda do cargo no momento da candidatura, embora até os servidores subordinados possam candidatar sem esta restrição, o que ocorre é que no Legislativo acaba prevalecendo os interesses da Defesa.

Publicidade

Todos os países da América Latina e da Europa revisaram os seus códigos de Processo Penal para efetivar o sistema acusatório e dando maior margem ao Ministério Público para arquivar a partir da década de 90.

Aqui no Brasil acusam o Ministério Público de punitivismo, mas nada se fala sobre o mito da obrigatoriedade da ação penal e da possibilidade de se autorizar expressamente por Lei o arquivamento em casos de menor impacto (funcionalismo penal). Inclusive até acham natural aqui que Judiciário investigue, acuse, instrua, sentencia e execute a sua própria pena, de ofício, como sinônimo de democracia e estado de direito, e não de ditadura, e não se discute eventual violação à separação dos poderes.

O mais curioso é que seguimos com ardor um CPP (Código de Processo Penal), que foi um Decreto Lei em 1942, e nunca foi votado no texto originário, pois o Governo Vargas fechou o Congresso entre 1937 e 1945, e assim o CPP é aplicado, sem nunca ter sido votado e nada se fala sobre isso.

Também não adianta fazer mutirões, pois o problema é estrutural e não pontual. É preciso que haja uma triagem de processos, além da simplificação das audiências, as quais não podem ser apenas burocráticas para ouvir o que já se tem nos autos e nem foi questionado pela Defesa.

Caso aleguem que há igualdade entre serviço em vara cível e vara criminal, basta que se faça uma pesquisa sobre quantas remoções voluntárias de Juízes na vara criminal para cível, e também do contrário. Mas, não vale contar as promoções, apenas as remoções.

Publicidade

As prescrições chegam em torno de 60% dos processos criminais, conforme pesquisa pelo Juiz no TJRJ, Aylton Cardoso Vasconcellos no TJRJ, disponível no link: https://www.editorajc.com.br/exame-analitico-das-informacoes-estatisticas-dajustica-criminal-de-primeiro-grau-de-jurisdicao-do-estado-do-rio-de-janeiro

Contudo, não há preocupação sobre isso, e o órgão de cúpula está preocupado em fazer pesquisas sobre sexo e cor de Juiz, mas não tem pesquisa sobre prescrição. Afinal, é muito simples controlar os dados sobre prescrição, basta criar um campo numérico para sentença reconhecendo prescrição, e anualmente seria possível identificar quantos processos prescreveram, sem uma pesquisa prolixa sobre prescrição, como fizeram em 2021.

Temos aproximadamente 80 milhões de processos ativos no Brasil, sendo que 20 milhões estão suspensos por algum motivo. Logo, sobram 60 milhões, destes há aproximadamente 8 milhões de feitos criminais. No entanto apesar de representarem quase 15% do total de processos efetivamente tramitando, como não há possibilidade de audiências em central de conciliação, o número mínimo seria de 1/3 de varas criminais em relação às cíveis, mas isto não é cumprindo, e geralmente fica em torno de 10%.

Além disso, não basta a retórica de que não estiver satisfeito que saia da Vara Criminal, pois é importante que as Varas Criminais não sejam mero trampolim para as cíveis, e que haja um desprestígio, perda de continuidade do trabalho com trocas e períodos de vacância.

Cita-se o exemplo da violência doméstica em que é muito encantador o discurso de Chefias, com fotos com flores para publicar na imprensa, mas um total descaso e nem se ouve para melhorar a estrutura de trabalho com simplificação do trabalho nestas Varas, e acreditam que basta distribuir Medidas Protetivas sem um critério mais objetivo, o que em breve irão propor até quiosques automatizados em shoppings e terminais de ônibus para se distribuir medidas protetivas, mas sem rede de proteção e com varas assoberbadas e aplicando penas de 15 a 50 dias de prisão domiciliar (vias de fato e ameaças), ou lesão corporal (02 anos), as quais serão cumpridas sem fiscalização e alguns casos até no mesmo endereço, pois pena até 04 anos é em regime domiciliar , quando não estão prescritos.

Publicidade

O STJ já decidiu que as Varas Cíveis podem também distribuir medidas protetivas, o que é ótimo, mas o Legislador foca apenas em aumentar as atribuições de Varas Criminais, onde não tem Vara Exclusiva de Violência Doméstica. Afinal, se não há processo penal, por qual motivo que a Vara Cível não pode atuar no caso? E mais uma vez assoberbam a Vara Criminal com procedimentos em que nem há o processo criminal, e há até mesmo decisão no sentido de que cabe à Vara Criminal resolver questões de alimentos, divórcio e outras matérias, além de julgar crime organizado, tráfico, roubo, homicídio e demais crimes.

Basta verificar quantos agressores de mulheres estão em presídios cumprindo pena em presídios por violência doméstica, praticamente zero, exceto em caso de estupro e feminicídio. Inclusive os estupros contra criança deveriam ser julgados por Varas da Infância, uma vez que têm mais preparo e equipe especializada por isso, mas tem havido remessas para a Vara de violência doméstica contra mulher, embora crianças e adolescentes do sexo feminino, ainda não sejam juridicamente mulheres e com autonomia, o que alcançam aos 18 anos, e não há, ou deveria haver, diferença na proteção entre uma criança do sexo masculino e feminino.

Outra medida seria que parte dos valores apreendidos em processos criminais, além das multas penais, deveria ser utilizado para melhorias nas Varas e Promotorias Criminais Estaduais, e aprovação de lei e atos normativos para simplificarem as intimações. Mas, para agravar tudo, praticamente todo os bens apreendidos em processos criminais Estaduais vão para a União, a qual não teve a despesa, mas ficou com o lucro.

Alguns sonhadores teorizam aplicar soluções da Suíça para o Haiti, mas sem conhecer a realidade, inclusive nem dialogam com o povo e as bases, pois vivem apenas na redoma do privativo e áreas VIPs de aeroporto, quando não usam aviões privativos; ou supostamente ouvindo integrantes de ONGs subsidiadas com verbas públicas, além do fato de que assessores das altas autoridades filtram as informações para não magoá-los.

É preciso um olhar mais efetivo para as Varas Criminais Estaduais buscando uma adequação do seu serviço, valorizando quem atua neste serviço, o que evita fuga deste serviço, e a perda de continuidade.

Publicidade

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica

Convidado deste artigo

Foto do autor Andre Luis Alves de Melo
Andre Luis Alves de Melosaiba mais

Andre Luis Alves de Melo
Promotor de Justiça em MG e Doutor pela PUC-SP e associado do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD. Foto: MPD/Divulgação
Conteúdo

As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.