Neste “Dia Internacional da Mulher”, data em que se rememoram os heróicos anos de luta pela igualdade de gênero e contra todos os tipos e espécies de violência e discriminação contra a Mulher, torna-se essencial enfatizar, como sempre o fiz em julgamentos no Supremo Tribunal Federal,que o processo de afirmação da condição feminina há de ter, no Direito, não um instrumento de opressão, mas uma fórmula de libertação destinada a banir, definitivamente, da práxis sociala deformante matriz ideológica que atribuía à dominação patriarcal um odioso estatuto de hegemonia sobre a mulher, capaz de condicionar comportamentos, de subjugar consciências, de controlar destinos, de moldar pensamentos e de forjar uma visão de mundo absolutamente incompatível com os valores desta República fundada em bases democráticas e cuja estrutura se acha modelada, dentre outros signos luminosos que a inspiram,pela igualdade de gênero e pela consagração dessa verdade evidente (a ser constantemente acentuada e relembrada), expressão de um autêntico espírito iluminista, que repele a discriminação e que proclama que homens e mulheres, enquanto seres integrais e concretos, são pessoas igualmente dotadas de razão, de consciência, de autonomia e de dignidade.
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O longo itinerário histórico percorrido pelo processo de reconhecimento, afirmação e consolidação dos direitos da mulher, seja em nosso País, seja no âmbito da comunidade internacional, revela trajetória impregnada de notáveis avanços, cuja significação teve o elevado propósito de repudiar práticas sociais que injustamente subjugavam a mulher, suprimindo-lhe direitos e impedindo-lhe o pleno exercício dos múltiplos papéis que a moderna sociedade, hoje, lhe atribui, por legítimo direito de conquista.
Esse movimento feminista - que fez instaurar um processo de inegável transformação de nossas instituições sociais - buscou, na perspectiva concreta de seus grandes objetivos, estabelecer um novo paradigma cultural, caracterizado pelo reconhecimento e pela afirmação, em favor das mulheres, da posse de direitos básicos fundados na essencial igualdade entre os gêneros.
Todos sabemos, sem desconhecer o relevantíssimo papel pioneiro desempenhado, entre nós, no passado, por Carlota Pereira de Queiroz, Nísia Floresta, Bertha Lutz, Chiquinha Rodrigues e Maria Augusta Saraiva, dentre outros grandes vultos brasileiros do processo de afirmação da condição feminina, que, notadamente a partir da década de 1960, verificou-se um significativo avanço na discussão de temas intimamente ligados à situação da Mulher, registrando-se, no contexto desse processo histórico, uma sensível evolução na abordagem das questões de gênero, de que resultou, em função de um incessante movimento de caráter dialético, a superação de velhos preconceitos culturais e sociais, que impunham, arbitrariamente, à
mulher, mediante incompreensível resistência de natureza ideológica, um inaceitável tratamento discriminatório e excludente, que lhe negava a possibilidade de protagonizar, como ator relevante, e fora do espaço doméstico, os papéis que até então lhe haviam sido recusados.
Dentro desse contexto histórico, a mística feminina, enquanto sinal visível de um processo de radical transformação de nossos costumes, teve a virtude, altamente positiva, consideradas as adversidades enfrentadas pela mulher, de significar uma decisiva resposta contemporânea aos gestos de profunda hostilidade, que, alimentados por uma irracional sucessão de fundamentalismos - quer os de caráter teológico, quer os de índole política, quer, ainda, os de natureza cultural -, todos eles impregnados da marca da intolerância e que culminaram, em determinada etapa de nosso processo social, por subjugar, injustamente, a mulher, ofendendo-a em sua inalienável dignidade e marginalizando-a em sua posição de pessoa investida de plenos direitos, em condições de igualdade com qualquer representante de gênero distinto.
Cabe ter presente, bem por isso, ante a sua extrema importância, a Declaração e Programa de Ação de Viena, adotados pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos promovida pela Organização das Nações Unidas (1993), na passagem em que esse instrumento, ao reconhecer que os direitos das mulheres, além de inalienáveis, “constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais” (Capítulo I, item n. 18), deu expressão prioritária à “plena participação das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e internacional (...)” (Capítulo I, item n. 18).
Foi com tal propósito que a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos instou, de modo particularmente expressivo, que “as mulheres tenham pleno e igual acesso aos direitos humanos e que esta seja uma prioridade
para os Governos e as Nações Unidas”, enfatizando, ainda, “a importância da integração e plena participação das mulheres como agentes e beneficiárias do processo de desenvolvimento (...)”, tudo isso com a finalidade de pôr em relevo a necessidade “de se trabalhar no sentido de eliminar todas as formas de violência contra as mulheres na vida pública e privada, de eliminar todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de mulheres, de eliminar preconceitos sexuais na administração da justiça e de erradicar quaisquer conflitos que possam surgir entre os direitos da mulher e as consequências nocivas de determinadas práticas tradicionais ou costumeiras, do preconceito cultural e do extremismo religioso” (Capítulo II, “B”, n. 3, itens ns. 36 e 38 ).
Esse mesmo compromisso veio a ser reiterado na Declaração de Pequim, adotada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada na capital da República Popular da China (1995), quando, uma vez mais, proclamou-se que práticas e atos de violência “são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser combatidos e eliminados”, conclamando-se os Governos à urgente adoção de medidas destinadas a combater e a eliminar todas as formas de violência e de constrangimento “contra a mulher na vida privada e pública, quer perpetradas ou toleradas pelo Estado ou pessoas privadas” (“Plataforma de Ação”, Cap. IV, “I”, item n. 224), especialmente quando tais atos traduzirem abuso de poder, tal como expressamente reconhecido nessa Conferência Internacional sobre a Mulher:
“As mulheres podem tornar-se vulneráveis à violência perpetrada por pessoas em posição de autoridade tanto em situações de conflito como de não-conflito. (...).”
(“Plataforma de Ação”, IV, “D”, itens ns. 112, 113, 117, 118 e 121)
O eminente Embaixador José Augusto Lindgren Alves, em lapidar reflexão crítica sobre o tema pertinente à condição feminina (”Relações Internacionais e Temas Sociais - A Década das Conferências “, p. 240/241, item n. 7.6, 2001, Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília), expendeu considerações extremamente relevantes sobre o processo de afirmação, expansão e consolidação dos direitos da Mulher no século XX, analisando-os em função das diversas Conferências internacionais promovidas sob a égide da Organização das Nações Unidas:
“Seja pelo desenvolvimento de sua situação em grande parte do mundo, seja nos documentos oriundos de cada uma das quatro grandes conferências da ONU a ela dedicadas nas três últimas décadas, o caminho percorrido pela mulher no século XX, mais do que um processo bem-sucedido de auto-ilustração no sentido kantiano - da qual a mulher efetivamente equiparada ao homem prescindiria e a mulher biológica per se não necessitaria -, evidencia uma capacidade de auto-afirmação, luta e conquista de posições inigualáveis na História. O fato é tão evidente que sua reiteração soa lugar-comum. Mais interessantes parecem os marcos conceituais de tal evolução.”
Na descrição de Miriam Abramovay, o desenvolvimento conceitual subjacente à práxis do feminismo passou, nas últimas duas décadas, dos enfoques reducionistas que encaravam a mulher como ente biológico, ao tratamento de sua situação como ser social, ‘ou seja, incorporou-se a perspectiva de gênero para compreender a posição da mulher na sociedade’.
As conferências da ONU sobre a mulher, por sua vez, sempre tendo como subtítulo os termos ‘Igualdade, Desenvolvimento e Paz’, foram expandindo os campos prioritários de atuação. A partir dos subtemas do trabalho, da educação e da saúde, na Conferência do México, em 1975, passaram a incluir a violência, conflitos armados, ajustes econômicos, poder de decisão e direitos humanos em Nairóbi, em 1985, e, agora, abrangem os novos temas globais do meio ambiente e dos meios de comunicação, além da situação particular das meninas. As estratégias, que privilegiavam originalmente a integração da mulher no processo de desenvolvimento, em Nairóbi, já afirmavam que ‘o papel da mulher no processo de desenvolvimento tem relação com o desenvolvimento de toda a sociedade’. Faziam-no, porém, sem um exame mais detido das relações históricas assimétricas homem-mulher, que incorporam relações de poder.
Em Beijing, as relações de gênero, com seu substrato de poder, passaram a constituir o cerne das preocupações e dos documentos adotados, tendo como asserção fundamental a reafirmação dos direitos da mulher como direitos humanos. E nestes se acham, hoje, naturalmente, incluídos seus direitos e necessidades específicos, particularmente os reprodutivos, os sexuais e os referentes à violência de que são vítimas, por indivíduos e sociedades, tradições, legislações e crenças.”
Essa função de tutela dos direitos da mulher, muitas vezes transgredidos por razões de inadmissível preconceito de gênero, é desempenhada, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Interamericana celebrada, em Belém do Pará (1996), com o objetivo de prevenir, punir e erradicar toda forma de desrespeito à Mulher, notadamente na hipótese de violência física, sexual e psicológica “ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa (...)” (Artigo 2, “B”).
O Brasil, fiel aos compromissos assumidos na ordem internacional e em seu próprio ordenamento doméstico, reconhece que toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, de pressões, de constrangimentos e de opressão, tanto na esfera pública quanto no âmbito privado, cabendo-lhe, ainda, por prerrogativa própria e “par droit de conquête”, além da proteção à sua essencial dignidade, o respeito incondicional aos seus direitos sexuais e reprodutivos(como, p.ex., o direito ao planejamento familiar livre e sem coerção, o direito ao prazer, o direito de controlar a própria fertilidade, o direito de livremente expressar sua orientação sexual ou sua identidade de gênero e de não sofrer discriminação ou tratamento violento ou preconceituoso em razão dessa escolha, o direito de controlar a natalidade, o direito à interrupção voluntária da gravidez nas hipóteses previstas em lei ou autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal),o direito à vida, à equidade de gênero, à liberdade, à cidadania plena e à busca permanente da felicidade!
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