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Opinião|Bolsonaro e o fantasma da prisão preventiva

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convidado
Por Miguel Reale Júnior
Atualização:
Jair Bolsonaro. Foto: Andre Borges/EFE

A prisão preventiva constitui medida excepcional, por força do princípio da presunção de inocência, visto ninguém poder ser considerado culpado antes do trânsito em julgado, conforme dispõe o inciso LVII do art. 5º. da Constituição Federal.

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Cumpre impor-se a exceção da prisão preventiva, se houver conveniência da instrução criminal ou para garantia de aplicação da lei penal. Dessa maneira, justifica-se essa grave medida, de privação antecipada da liberdade, se for necessária para impedir que haja deturpação ou supressão das provas por parte do acusado ou que venha este a se eximir do cumprimento da pena, por via, por exemplo, da fuga.

Assim, são pressupostos da decretação da prisão preventiva que haja "fumaça da prática de um delito" (fumus comissi delicti) e indícios suficientes de constituir um perigo o estado de liberdade do acusado (periculum libertatis), diante de provável obstrução de produção de prova ou de reiteração delituosa.

De outra parte, segundo o artigo 5º, inciso LXVI, da Constituição da República, "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança". Por sua vez, o artigo 282, §6º, do Código de Processo Penal, prevê que a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar. Assim, se há outra medida cautelar menos invasiva que seja adequada e suficiente para resguardar o fim útil do processo, deve esta ser adotada e não a prisão preventiva.

Destarte, conclui Daiana Ryu, na linha do processualista italiano Giulio Illuminati e de Antônio Magalhães Gomes Filho, Maurício Zanoide de Moraes, Marta Saad, não poder a prisão cautelar assumir função essencialmente punitiva, nem se basear tão somente no escopo de prevenir o perigo que representa à sociedade, em razão da gravidade abstrata dos fatos1.

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Segundo se depreende do relatório da PF, haveria uma organização criminosa agindo em diversas frentes, como já acentuado: fake news; ataques ao STF e ao processo eleitoral, às urnas especialmente; obtenção de atestado falso de vacina; insurreição de 8 de janeiro e obtenção de vantagens econômicas indevidas por meio da estrutura do Estado, o que, aliás, justificaria a competência do Supremo Tribunal Federal no caso das joias, pois a prova de um fato implica e interfere na prova de outro.

Esse grupo de pessoas, ajudantes de ordem, parentes, o ex-presidente, advogado podem, na recompra do relógio e posterior entrega ao TCU, ter cometido o crime de obstrução de justiça previsto no artigo 2. §1. da Lei n. 12.850/13, segundo o qual constitui crime impedir ou, de qualquer forma, embaraçar a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

Organização criminosa é conceituada na Lei n. 12.850/13 no seu art. 1º, § 1º como "a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) ano".

Caso se constate a ação continuada do grupo de quatro ou mais pessoas, formado no entorno do ex-presidente da República, que de modo estruturado, organizadamente, se propuseram à prática de infrações penais, então se caracteriza o crime de organização criminosa e o de obstrução de justiça, consistente em embaraçar a investigação de crimes praticados pela organização criminosa.

Como se ressaltou, todavia, a gravidade dos fatos, por si só, não justifica a decretação da prisão preventiva, pois apenas tal se impõe para preservar a prova doravante ou para impedir a fuga. É preciso, portanto, além da verificação da existência da prova do fato delituoso e indício suficiente de autoria, a constatação de perigo para o desenrolar do processo em virtude do estado de liberdade do acusado.

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A liberdade de membros do grupo já permitiu ação que justificaria a prisão preventiva em vista do periculum libertatis, agindo-se para borrar os fatos e tentar destruir os rastros da prática do peculato consistente em se ter agido como proprietário do relógio, sem o ser, ao vendê-lo nos Estados Unidos, com a recompra do relógio e posterior entrega ao Tribunal de Contas da União.

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Porém, a prisão preventiva deve ser decretada em face de perigo futuro, como se viu acima, e é necessário que a possibilidade de obstrução de prova se apresente no momento presente a justificar medida tão grave, conforme dispõe o §2º, do art. 312, do Código de Processo Penal: "A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada".

Assim, se verificar-se atuação visando a dificultar a descoberta do caminho do dinheiro , isto é, qual o destino do fruto da venda do relógio e qual a origem do dinheiro para o resgate, a recompra, desse mesmo relógio na loja que o colocara à venda nos Estados Unidos, então, se justifica a decretação de prisão preventiva.

De outra parte, Bolsonaro disse em Goiás, correr risco de prisão estando no Brasil, indicando que poderia ausentar-se do país, mas, como alerta Daiana Ryu, "o perigo de fuga não pode ser presumido, devendo o magistrado se basear em elementos concretos presentes nos autos" (Dissertação de Mestrado RYU, Daiana. Prisão cautelar e direito ao julgamento no prazo razoável. Belo Horizonte: D'Plácido, 2021, p. 97).

Diante dessa possibilidade de ausentar-se do Brasil, caberia inicialmente, a determinação de apresentação de passaporte a ser retido pelo Juízo. Se o passaporte, a ser apresentado, não o for, aí caberia o decreto de prisão preventiva.

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Miguel Reale Júnior. Foto: Felipe Rau/Estadão

Parece-me, portanto, distante a necessidade de decretação de prisão preventiva de Bolsonaro, que paira em seu espírito como um fantasma shakespeariano. Não se estabeleceu ainda a configuração de organização criminosa nem se lhe imputou participação nesta associação criminosa, a ser investigada; não se tem indício de doravante buscar obstar a produção de prova; nem se tem qualquer indicação de fuga do país.

Bolsonaro poderá continuar a posar de vítima de perseguição, enquanto é apenas sujeito à investigação obrigatória, sem omissão dos órgãos de controle como tanto se deu na sua gestão.

1 RYU, Daiana. Encarceramento provisório na pandemia do coronavírus (Sars-CoV2) na  jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: prisão preventiva como ultima ratio?. In: Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 8, n. 1, jan./abril 2.022, p. 452.

*Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça

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