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Opinião | O feitio do gigante Ruy

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convidado
Por José Renato Nalini

Ao contrário de Joaquim Nabuco, belíssima personalidade brasileira, tanto física quanto culturalmente, Ruy Barbosa tinha temperamento e feitio radicalmente diversos. Era sumido, modesto, calado. Transmitia a impressão de um homem cuja timidez o fazia retraído e apagado. Por isso, de todo inadequado para a função em Haia, cujo êxito dependia, principalmente, do aplomb, da vivacidade, da audácia oratória e da ousadia diplomática.

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Todos os que o conheciam pensavam assim. Inclusive os estrangeiros. Um deles, o Conde Prozor, delegado russo, Secretário-Geral da Conferência de 1907, e que já servira no Brasil como Embaixador de seu país.

Prozor conhecia Ruy Barbosa e quis apresenta-lo a Choate, chefe da delegação americana. Era impressionante o contraste físico entre os dois: Choate, corpulento e alto, amplo tórax. Ruy, pequenino, sumido dentro de sua comprida sobrecasaca, tinha de dobrar a cabeça para traz se quisesse conversar com o volumoso interlocutor.

O que sobrava a ele era força moral. Baptista Pereira, que era assistente de Ruy, de quem se tornaria genro, no estudo “Ruy na Conferência de Haia”, incluído no livro “Figuras do Império e Outros Ensaios”, deu testemunho insuspeito sobre o futuro sogro. De início, todos lamentavam a ausência de Rio Branco. Este sim, com sua fascinação, seu prestígio, seu dom de proselitismo, faria bonito em nome do Brasil. Censuravam Ruy por viver isolado, não angariar simpatias, não fazer alianças, não sacrificar sistematicamente as horas de estudo à tirania dos hábitos sociais.

Ora, uma Conferência consiste na prática inteligente e astuta das qualidades que Ruy não tinha. Os trabalhos se desenvolveriam em atmosfera de pura diplomacia: seria um torneio de habilidades e sutilezas.

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Embora não praticasse a arte da expansão simpática, Ruy foi designado Presidente de Honra da Primeira Comissão da Conferência. Foi o único delegado latino-americano a merecer tal distinção. Houve estranhamento, com D’Estournelles de Constant, o famoso pacifista francês, indagando: “Mas que espécie de homem é esse Ruy?”.

A mídia também indagava quem era Ruy. O jornalista inglês William Stead, fundador e diretor da “Review of Reviews”, obteve da delegação russa a informação de que ele era uma das mais eminentes personalidades mandadas à Conferência, Presidente do Senado de sua terra e reputado como um dos maiores oradores e dos mais proficientes jurisconsultos da América do Sul.

O jornalista não simpatizou, de princípio, com Ruy Barbosa. Referia-se a ele com ironia e vulgarizou a alcunha “Dr. Verbosa”, com intuito depreciativo. Posteriormente mudou de ideia e fez a apologia de Ruy na mídia britânica. Uma curiosidade: William Stead pereceu no naufrágio do Titanic.

Iniciada a Conferência, Ruy participou de todos os atos. Ocupava incessantemente a tribuna. Acompanhou, simultaneamente, o trabalho das quatro Comissões. Estudava os projetos, escrevia discursos, redigia emendas. Comunicava-se diariamente com o Governo. Seus principais discursos foram publicados em francês num volume de 332 páginas, sob o título “Actes et Discours”. Todo esse trabalho, o formidável trabalhador fez só. Inteiramente só. Até porque, a delegação brasileira não tinha corpo consultivo especializado. E o feitio de Ruy não toleraria tal colaboração. Era criatura que, no domínio intelectual, bastava-se a si mesmo.

Não se poupava. Era prolixo na sua produção. Não a encurtava ou resumia. Antes, encarava sempre o assunto sob todos os aspectos, de tudo se ocupando, esquadrinhando todos os meandros. Manuscrevia, letra redonda, lúcida, regular, de princípio ao fim. À evidência, não sobrava tempo para vida social.

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A participação ativa do brasileirinho chocou as grandes potências. Achavam-na inútil e importuna. Foi considerado um estorvo de proporções gigantescas. Os conferencistas passavam a conversar entre si, para não ouvi-lo. Mas perseverou Ruy no seu programa e impôs-se ao respeito da Conferência. Esta aprendeu a suportar Barbosa e a reconhecer nele um dos seus mais poderosos homens. Tão grande triunfo pessoal, não obteve membro nenhum da Conferência. Ruy não tinha grupo. Não tinha aliados. Ao contrário, rivais e inimigos. Mas prosseguiu impávido e, num esforço crescente, na realização do programa traçado. Disse o que devia ser dito em bem da verdade.

Na tribuna, Ruy era frio, calmo e imperturbável. Nada havia na sua eloquência de demagogo. Era um vigoroso apelo à razão, dialética a presumir auditório inteligente. Sob austera argumentação, ardia a chama da paixão reprimida. Mercê de sua palavra, o Brasil saiu da Conferência como a nona potência mundial. A primeira depois das oito já consagradas. Analistas estrangeiros disseram que ele poderia ter ido além e incluído o Brasil no Tribunal de Justiça Internacional. O que nos tornaria iguais à França e aos Estados Unidos. Mas não era esse o seu objetivo.

A “Águia de Haia” só queria cumprir com o seu dever de brasileiro.

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo
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