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O fracasso alemão do NetzDG

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Por Ana Beatriz Cupani e Marco Antonio da Costa Sabino
Ana Beatriz Cupani e Marco Antonio da Costa Sabino. Foto: Arquivo pessoal e divulgação

Estamos vivendo audiências públicas no STF a respeito da constitucionalidade do artigo 19 do MCI, que determina a regra geral do regime de responsabilização de intermediários de aplicação (i.e., Facebook, Instagram, Mercado Livre, Magazine Luiza, Reclame Aqui). Há quase 50 inscritos, muitos do Poder Público, e uma tendência a responsabilizar diretamente as plataformas. Um paradigma normalmente utilizado para justificar essa escolha é o Netzwerkdurchsetzungsgesetz ou "NetzDG", regulação alemã que buscou diminuir discursos de ódio e de intolerância por meio de responsabilização direta dos intermediários.

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Na semana passada, entrevistamos dois pesquisadores alemães - Martin Fertmann e Erik Tuchtfed - para saber, em viva voz, da penetração, serventia e aderência às finalidades do NetzDG. Tuchtfeld afirmou que o NetzDG é uma das regulamentações mais controversas dos últimos 10 anos na Alemanha. Apontou o dado nada abonador que a legislação alemã serviu como inspiração para medidas análogas encetadas na Rússia e na Venezuela. Afirmou que não é possível saber se há overblocking ou underblocking das plataformas depois da entrada em vigor do NetzDG.

A impressão dos pesquisadores é que o NetzDG tem pouca serventia. Seria como se fosse um cão de guarda que ladra, mas não morde.

A NetzDG entrou em vigor na Alemanha em 2018 com um bom motivo: sua ideia era coibir postagens relacionadas a discursos de ódio, em um contexto histórico-social em que esses eram mais fortemente disseminados e estavam possivelmente relacionados ao aumento significativo na violência contra os migrantes e refugiados do país que se constatou à época.

Estranhamente - ou não - o NetzDG fez com que a Alemanha figurasse como uma das investigadas no documentário Meet the Censors, sobre censura moderna, ao lado de países como Irã, Sudão do Sul, China e Índia.

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A lei alemã impõe expressamente responsabilidade das plataformas de redes sociais que tenham mais de 2 milhões de usuários inscritos pela remoção de todo "conteúdo ilegal" (o que incluiria, por exemplo, discurso de ódio e difamação de religiões) conforme forem denunciados por outros indivíduos. Assim, estabelece que qualquer conteúdo "manifestamente ilegal" - aqueles que encontram eco no Código Penal alemão - deve ser removido em no máximo 24h, e, para todos os demais conteúdos ilegais (que englobam por exemplo, difamação criminal e insultos, além de difamação de religiões que viole entendimentos de direitos humanos internacionais) estabelece um prazo máximo de 7 dias. Ainda, que a não remoção do conteúdo implica em uma multa de até 50 milhões de euros.

A lei foi amplamente criticada por ser muito vaga e inclusiva no sentido de não restringir expressa ou taxativamente a que tipo de conteúdo deveria ser aplicada. Alguns ponderam também que ela privatiza a censura online na medida em que não exige transparência das plataformas ou mesmo um devido processo ("due process") para que os usuários sejam penalizados, bem como encoraja uma implementação excessiva de suas medidas ao incentivar que as plataformas prezem mais pelo cuidado do que pela liberdade de expressão em sentido amplo. Consideram ainda que uma vedação na disseminação de informação baseada em critérios vagos e ambíguos (como meramente "insulto" e "difamação") seria incompatível com o art. 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que assegura a liberdade de expressão e acesso à informação de forma ampla.

Martin revela que nada mudou com o advento do NetzDG. Os conteúdos nocivos - como o discurso de ódio - ainda não removidos pelas plataformas automaticamente, porque as hipóteses dos Termos de Uso dessas plataformas são ainda mais restritas que aquelas do NetzDG, de modo que não parece haver, de fato, uma censura sobre os intermediários, que só serão sancionados se descumprirem a ordem de remoção com base no Código Penal ou se sistematicamente falharem na remoção de conteúdos odiosos (por exemplo). O mesmo dado está em trabalho que aponta que cerca de 95% dos conteúdos odiosos são removidos preventivamente, antes ainda de qualquer usuário ter capacidade de vê-lo[1].

Esses dados demonstram o erro da Alemanha e a pouca serventia do NetzDG. Mostram mais. Boa parte dessa imprestabilidade se deve às ações preventivas dos intermediários de aplicação, consubstanciadas em termos de uso - conjunto de regras contratuais que regem a ética nos conteúdos - e mecanismos de remoção ou de esclarecimento têm funcionado. A Alemanha foi mais realista do que o rei, e o resultado foi promulgar uma lei que não tem aplicabilidade, ou pelo menos não aquela que se esperava. Seu principal impacto foi servir como inspiração para outros Países, alguns não tão democráticos assim.

No Brasil, o debate a respeito da constitucionalidade do artigo 19 do MCI ignora os esforços das plataformas, rapidamente acusadas dos males do mundo, tendo como pano de fundo o 8 de janeiro. Os Poderes Públicos estão entendendo que têm que intervir, impondo sua mão pesada sobre os provedores de aplicação. O NetzDG mostrou não apenas o fracasso desse tipo de abordagem, como revela outro perigo: já que os intermediários removem grande parte do conteúdo odioso e não há, na Alemanha, dados que permitam uma análise se os provedores removem conteúdos demais.

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É preciso entender que existe uma zona a respeito da qual o intérprete da vez decidirá se determinada expressão foi abusiva ou não. O Brasil procura combater, com essa medida, desinformação e atos antidemocráticos. Afinal, o que é desinformação? Declarações inseridas na seara da política, muitas vezes, não são claramente violações à lei, senão manifestações ideológicas. A responsabilização direta das plataformas fará com que sequer saibamos se há uma super-remoção de conteúdo, ou seja, a censura poderá ser do jeito que ela mais gosta - silenciosa. Causou arrepios as declarações de Marin e Erik no sentido de não haver dados sobre super-remoção. A mesma coisa ocorrerá no Brasil. Não saberemos se discursos constitucionalmente protegidos serão removidos. A censura ronda nossa casa.

Infelizmente, o que quer o Poder Público é dar à sociedade a impressão de missão cumprida. Para isso, o alto custo será o sacrifício da liberdade de expressão.

*Marco Antonio da Costa Sabino, advogado, so?cio do escrito?rio Mannrich e Vasconcelos Advogados, e? especializado em resoluc?a?o de confitos, mi?dia e internet, governanc?a corporativa e compliance. Doutor em Direito pela Universidade de Sa?o Paulo (USP) e po?s-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Pesquisador do Global Freedom of Expression da Universidade de Columbia (EUA), foi academic visitor na Universidade de Oxford (Inglaterra). Professor da FIA e do IBMEC. E? pesquisador do Instituto de Liberdade Digital (ILD)

*Ana Beatriz Cupani, estagiária da Área de Mídia e Internet de Mannrich e Vasconcelos Advogados

[1] FISS, Joelle, et. al. The Digital Berlin Wall: How Germany (Accidentally) Created a Prototype for Global Online Censorship, 2019, disponível em: https://futurefreespeech.com/wp-content/uploads/2020/06/analyse-the-digital-berlin-wall-how-germany-accidentally-created-a-prototype-for-global-online-censorship.pdf e https://futurefreespeech.com/wp-content/uploads/2020/09/Analyse_Cross-fertilizing-Online-Censorship-The-Global-Impact-of-Germanys-Network-Enforcement-Act-Part-two_Final.pdf, acesso em 28.3.2023, 12h04

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