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Opinião | O incrível caso do ‘juiz inglês’, razões e consequências

Talvez possa ser um simples caso do jovem interiorano de poucas posses, portador de uma inteligência privilegiada, que almejava a cidadania inglesa e uma ascensão social reconhecida. Algo fora da rotina forense, que mais parece uma história de ficção

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Por Vladimir Passos de Freitas

A imprensa divulgou nesta semana o inusitado caso de um juiz aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, denunciado pelo Ministério Público perante a 29ª Vara Criminal da capital, pela prática dos crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso, artigos 299 e 304 do Código Penal.

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Segundo a denúncia, José Eduardo Franco dos Reis teria criado um personagem fictício de nome Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield e, com ele, obtido a cédula de identidade nº 15.275.808-2, cursado Direito na tradicional Faculdade do Largo de São Francisco, onde se formou em 1992. Aprovado em concurso para a magistratura estadual em 1995, aposentou-se no ano de 2018. O denunciado já tinha documento de identidade com o nome de José Eduardo e, após requerer, em 3 de outubro de 2024, uma segunda via de sua identidade como Edward, a existência de duplo registro foi descoberta.

Dupla personalidade e origem do magistrado

A ciência revela casos em que uma pessoa tem ou busca mais de uma personalidade. David Spiegel registra que “No transtorno dissociativo de identidade, anteriormente denominado transtorno de personalidade múltipla, duas ou mais identidades se alternam no controle da mesma pessoa” e que, na forma possessiva, “A pessoa conversa e age de forma evidentemente diferente, como se outra pessoa tivesse assumido o comando”.[i]

Não se pode afirmar, por ora, tratar-se de dupla personalidade. As informações sobre o caso ainda são imprecisas. Todavia, as declarações prestadas pelo denunciado à autoridade policial, em 2 de dezembro de 2024, são pouco convincentes, pois afirmou ele ter sido informado, quando da morte de seu pai, que teria um irmão gêmeo que foi doado a outra família. Portanto, uma insinuação de que poderiam ser duas pessoas.

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Pesquisa realizada através do site Family Search fornece dados importantes de certidão de nascimento que certamente pertence ao denunciado.[ii] O documento se refere ao mesmo município em que ele declara ter nascido, a pequena Águas da Prata, SP. Há uma pequena divergência no nome, na certidão está José Eduardo Francisco dos Reis e na cédula de identidade José Eduardo Franco dos Reis, possivelmente porque o avô materno era Francisco Tristão Franco. Os pais são os mesmos, Vitalina e José, sendo ele pintor. A data de nascimento foi dia 16 de março de 1958, constando na denúncia dia 17, porque neste dia foi feito o registro.

A origem de uma família simples, o elevado nível de inteligência (aprovado no disputado exame da USP e no concurso para juiz de Direito) e a admiração pela Inglaterra, podem ter levado à busca de um pomposo nome inglês, com o charme de, segundo ele declarou em 1995 ao jornal Folha de São Paulo, ser descendente de família nobre e neto de um magistrado inglês.[iii] Mas isto só aos psiquiatras ou psicólogos caberá concluir.

A responsabilidade penal

As acusações feitas na denúncia são de ter apresentado documento ideologicamente falso ao comprar um veículo em 10/9/2021, ter fornecido dados falsos e realizado exame no Departamento Estadual de Trânsito para obter a renovação da CNH em 20/08/2021 e, em 3/10/2024, apresentado dados irreais para obter a segunda via da cédula de identidade, com o nome inglês.

Não foi formulada denúncia pelos fatos anteriores, ou seja, a falsidade ideológica do segundo registro, a apresentação dos documentos perante a USP e o Tribunal de Justiça de São Paulo, quando participou do concurso. Quiçá por uma questão estratégica, a fim de evitar discussões fáticas ou eventual alegação de prescrição que levariam o processo a durar anos.

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A eventual nulidade das sentenças

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A primeira indagação que vem à mente dos que leem as reportagens é se as sentenças dadas pelo magistrado são nulas. Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield foi, com este nome, aprovado em concurso público para juiz de Direito e exerceu as suas funções por cerca de 23 anos. Obviamente, sentença só juiz, investido deste poder pelo Estado, pode dar, pois, nos termos do art. 16 do Código de Processo Civil, a “jurisdição civil é exercida pelos juízes e pelos tribunais em todo o território nacional” Se um terceiro usurpar tais funções, evidentemente, o ato processual será nulo.

Edward Albert ou José Eduardo foi juiz em situação regular, preenchidos todos os requisitos legais. O uso indevido do nome, se comprovado, não retira daquela pessoa a condição de juiz. Será apenas um juiz com nome trocado. Não vejo assim qualquer nulidade, uma coisa é a pessoa e outra, o nome adotado. Se o registro foi falso, ele responderá pelo crime praticado. Mas isto não interferiu na função de julgar.

Ademais, seria uma tarefa impossível localizar todas as sentenças ou mesmo decisões (p. ex., liminares), dadas ao longo de décadas. Mais grave ainda seria a situação de flagrante insegurança jurídica. Aplica-se ao caso a lição de Carlos Maximiliano, para quem “Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou absurdas”.[iv]

A fragilidade dos concursos

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O caso ora retratado reflete a fragilidade dos concursos para a magistratura. A regulamentação do CNJ, com requinte de minúcias que evitem o protecionismo a favor de determinados candidatos, não enfrenta suficientemente dois pontos essenciais: a) o exame psicotécnico; b) investigação social. A eles a Resolução CNJ 75/2009 [v] dedica apenas dois vagos artigos, 60 e 61.

O psicotécnico é essencial, pois o número de pessoas com problemas mentais ou de relacionamento é cada vez maior. É preciso não apenas o exame por psicólogo do tribunal, mas também o direito a recurso a uma banca estranha ao Judiciário, composta por pessoas sem vínculo com a Corte e seus dirigentes. A investigação social, que ainda foca na ingênua expedição de ofícios solicitando informações sobre os candidatos, não tem qualquer utilidade. Em tempos que facções criminosas introduzem pessoas em funções menores, como a de estagiário na Justiça, como ocorreu em Santa Catarina,[vi] não é preciso ter um QI médio para concluir que o mesmo se dá nas principais funções do Estado. É preciso pesquisa pessoal por órgão público de confiança do tribunal, sobre a vida do candidato. Afinal, depois da posse a exclusão de um juiz é algo próximo de uma missão impossível.

A suspensão da aposentadoria

O Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, logo após a divulgação dos fatos, suspendeu o pagamento da aposentadoria do denunciado. Compreensível a medida em um primeiro momento, diante de todas as dúvidas e repercussão dos fatos. Porém, seja o juiz Edward Albert ou José Eduardo, ele trabalhou e recolheu contribuições pelo tempo necessário à obtenção da aposentadoria. Esta não passa de uma retribuição pelo investimento feito ao longo dos anos. Uma coisa nada tem a ver com a outra, razão pela qual tudo indica que, ao final, a medida cautelar administrativa não prevalecerá.

Conclusão

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No mais, um detalhe pouco comentado. O juiz acusado fez uma carreira discreta, não havendo notícias na mídia ou nas redes privativas de juízes ou promotores, de ações arbitrárias ou de outros vícios de conduta pelos locais onde passou. Talvez possa ser um simples caso do jovem interiorano de poucas posses, portador de uma inteligência privilegiada, que almejava a cidadania inglesa e uma ascensão social reconhecida. Algo fora da rotina forense, que mais parece uma história de ficção. Certamente será objeto de um bom filme a ser exibido nas salas de cinema e pelas plataformas de streaming.

[i] Spiegel, David. Transtorno dissociativo de identidade. Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt/casa/dist%C3%BArbios-de-sa%C3%BAde-mental/transtornos-dissociativos/transtorno-dissociativo-de-identidade. Acesso em 5 abr. 2025.

[ii] “Brasil, São Paulo, Registro Civil, 1925-2023”, FamilySearch (https://www.familysearch.org/ark:/61903/1:1:QLB6-NMR2: Wed Mar 12 00:49:26 UTC 2025), Entry for José Eduardo Francisco dos Reis and José dos Reis.

[iii] G1. Juiz de São Paulo é acusado de usar identidade falsa por mais de 40 anos e ‘enganar instituições. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/04/03/juiz-de-sao-paulo-e-acusado-de-usar-identidade-falsa-por-mais-de-40-anos-e-enganar-instituicoes.ghtml. Acesso em 4 abr. 2025.

[iv] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1981, 9ª. ed., p. 166.

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[v] CNJ, Resolução nº 75, de 12 de maio de 2009. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2009/07/rescnj_75.pdf. Acesso em 5 abr. 2025.

[vi] SINTRAJUFE TS. Prisão de estagiária na Justiça Federal de Santa Catarina reforça argumentos contra a Residência Jurídica; Riscos aumentam sem servidores concursados.

Disponível em: https://sintrajufe.org.br/prisao-de-estagiaria-na-justica-federal-de-santa-catarina-reforca-argumentos-contra-a-residencia-juridica-riscos-aumentam-sem-servidores-concursados/. Acesso em 5 abr. 2025.

Artigo publicado originalmente na revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur)

Convidado deste artigo

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Vladimir Passos de Freitas
Presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi secretário nacional de Justiça, promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus (Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário). Foto: Arquivo pessoal
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