Considerado por muitos o país do futebol e aclamado por ser a terra do carnaval, o Brasil poderia muito bem ser conhecido também por outra alcunha: o país dos processos judiciais.
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Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as despesas totais com o Judiciário somaram R$ 133 bilhões em 2023, quase 1,4% do PIB. Para que se tenha uma ideia, o orçamento federal para infraestrutura foi de R$ 24 bilhões.
Não são só os valores que assustam. O país possui o alarmante número de 84 milhões de processos ativos, um acervo que – mesmo com a implementação do processo eletrônico e o aumento da eficiência do Judiciário – cresceu quase 15% em 10 anos.
Esse universo de ações, é verdade, resulta de múltiplas causas. Decorre, dentre outros fatores, da burocracia e ineficiência da administração pública, dos descumprimentos legais e da prestação defeituosa de serviços pelos agentes privados, da morosidade no andamento das ações judiciais e de uma excessiva cultura litigiosa. Embora o ajuizamento de muitas dessas ações seja legítimo e, por vezes, inevitável, há, contudo, uma parcela substancial desses processos que é resultado de práticas abusivas e ilegais – a chamada litigância predatória.
A advocacia predatória pode ocorrer de diversas formas. Uma delas consiste na utilização de técnicas ilegais de captação em massa de clientes – normalmente, beneficiários de justiça gratuita – com quem o advogado não tem relação próxima, quiçá, qualquer relação. Beneficiando-se dessa estratégia, os advogados ajuízam milhares de demandas idênticas (por vezes, simultaneamente), criando uma litigiosidade artificial, com petições padronizadas e genéricas. Nos casos mais graves, a tática vem acompanhada da adulteração ou manipulação de documentos, uso de uma mesma procuração genérica em ações diversas sem conhecimento do cliente, falsificação de assinaturas, e retenção, pelo advogado, dos valores que deveriam ser repassados ao cliente.
Os exemplos Brasil afora são inúmeros. Nas cidades de Araripina e Ipubi/PE, por exemplo, um único advogado ajuizou 17 mil ações idênticas e genéricas contra uma mesma parte – número 300% superior ao acervo local. Todas acabaram extintas após o juiz reconhecer a “captação ilícita de clientela” e “abuso do direito de litigar”.
Na próxima quarta-feira (18.09.2024), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) retomará um julgamento determinante para frear o ajuizamento abusivo de ações judiciais: o STJ definirá se juízes, suspeitando da prática de litigância predatória, poderiam solicitar a emenda de petições iniciais ou a apresentação de documentos adicionais para lastrear os pedidos, sob pena de extinguirem as respectivas ações. O resultado do julgamento terá força vinculante em âmbito nacional.
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O que está em jogo é muito mais do que uma tecnicidade processual. O ajuizamento abusivo de ações tem reflexos não apenas para o funcionamento do Judiciário, mas também impactos econômicos e sociais importantíssimos.
Para o Judiciário, essa enxurrada de processos ilegais inunda as varas judiciais e impacta na produtividade dos juízes – tendo um efeito-cascata na qualidade das decisões e no tempo de julgamento que processos legítimos recebem. As estimativas do Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de São Paulo apontam que há quase 3 milhões de ações resultantes de práticas predatórias no país, que custaram aos cofres públicos mais de R$ 25 bilhões. Um prejuízo ao Erário que deságua, em última análise, no bolso do contribuinte.
O impacto é também sentido por quem acaba sendo o alvo típico dessas ações predatórias: concessionárias de serviço público, empresas privadas e instituições financeiras. Criados, por sua natureza, para agregarem valor e gerarem riqueza, esses agentes se veem obrigados a administrar um contingente de milhares de processos que sequer deveriam existir, despendendo recursos para tanto, e tendo que constituir provisões financeiras que impactam, por exemplo, no preço de suas ações e na sua capacidade de tomarem financiamento.
Autorizar que juízes possam, após análise do processo e em caso de suspeita de abusividades, solicitar providências para que advogados detalhem as especificidades do caso e/ou apresentem documentos adicionais é medida salutar para estancar práticas ilegais por maus advogados. Trata-se de assegurar o exercício do poder geral de cautela que deve orientar a atuação dos magistrados.
Há, por outro lado, quem expresse o temor de que conceder esses poderes a juízes possa embaraçar o exercício legítimo da advocacia. Não parece ser, contudo, o caso. Afinal, não se está a coibir o ajuizamento massificado (e legal) de ações contra uma mesma empresa, mas justamente o ajuizamento tido como predatório, no qual o advogado se vale do emprego de táticas ilegais para captação de cliente ou formulação de lides artificiais.
A medida, na verdade, beneficiaria a classe de advogados, ao tentar restringir a atuação de profissionais que se valem de infrações éticas ou, às vezes, do cometimento de crimes para enriquecer indevidamente – não raro, “roubando mercado” de quem atua dentro das quatro linhas.
A bola está, agora, na marca do pênalti e a responsabilidade é do STJ: cabe àquela Corte garantir o emprego de mecanismos mínimos para que o Poder Judiciário possa deixar de ser utilizado ilegalmente por maus profissionais, estancando, com isso, o desperdício de bilhões em recursos públicos e privados país afora.
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