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Opinião | O lamento de Lobato

Sua base era Taubaté e dali vislumbrava a tragédia: “A serra da Mantiqueira, região que observamos, ardeu como uma aldeia belga e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado, cá e acolá, de manchas de verdura – as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pelos aceiros. Tudo o mais é crepe negro”

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Por José Renato Nalini

O Estadão reproduziu, no dia 12 de outubro último, o artigo “Uma Velha Praga”, escrito por Monteiro Lobato e publicado no dia 12 de dezembro de 1914. O autor de “Cidades Mortas”, o visionário que já afirmava que “o petróleo é nosso”, o criador do “Sítio do Pica-pau Amarelo”, maior do que Disney, só que escreveu em português, contemplava as queimadas que ardiam no Vale do Paraíba naquele ano.

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Era o ano da deflagração da Primeira Grande Guerra Mundial e, portanto, a comparação com os bombardeios era inevitável. Lobato começa por comparar o interesse pelo conflito armado e o desinteresse pelo destino das matas. Dizia-se porta voz do sertão para alertar os brasileiros: “Que uma voz do sertão venha, portanto, dizer às gentes da cidade que, se por lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos pernicioso devasta as nossas matas com furor não menos germânico”.

Monteiro Lobato era homem da agricultura. Sua família possuía terras na Mantiqueira. Daí lastimar o fogo que “lambeu montes e ales, sem um momento de tréguas, durante o mês (agosto) a fio”. As chuvinhas de setembro não fizeram frente ao “verão de sol” que deu azo “a que se torrasse tudo quanto escapara à sanha de Agosto”.

Sua base era Taubaté e dali vislumbrava a tragédia: “A serra da Mantiqueira, região que observamos, ardeu como uma aldeia belga e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado, cá e acolá, de manchas de verdura – as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pelos aceiros. Tudo o mais é crepe negro”.

Esse “crepe negro”, símbolo de luto, está hoje por todo o Brasil, que vê desaparecerem os seus biomas e chega a comemorar a “redução” do desmatamento, como se fora vitória diminuir alguns quilômetros quadrados na carnificina exauriente de nossa biodiversidade.

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A chuva, em 1914, era “homeopática”, insuficiente a que “o fogo amortecido, mas não dominado, amoita-se, insidioso, nas “piúcas”, a fumegar imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamas, logo que o céu se limpe e o sol lhe dê a mão”.

Já se prenunciava o que se tornou a regra: “quem cuida de calcular os prejuízos de toda a ordem, provindos de uma queima destas? Em velhas camadas de humus destruídas, em sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; no rejuvenescimento florestal da terra paralisado e retrogradado; na destruição das aves silvestres e possível advento consequente de pragas insectiformes, na alteração para pior do clima, pela agravação crescente das secas; em vedos, cercas e aramados perdidos; em gado morto ou depreciado pela falta de pastos; em mil e uma particularidades que dizem respeito a esta ou aquela zona, e, dentro dela, a esta ou aquela situação agrícola”.

Tudo isso foi centuplicado em nossa época, cento e dez anos depois. Porque agora incide sobre a Terra a inclemência das emergências climáticas, provocadas por quem não soube zelar pelo habitat, desrespeitou o ambiente, sacrificou a natureza, matou a biodiversidade e colocou na fogueira do egoísmo insano, todos os biomas desse imenso patrimônio que nos foi ofertado gratuitamente.

O desabafo de Lobato seria hoje politicamente incorreto, porque ele atribui ao “caboclo” a responsabilidade pelo fogo que se alastrou por toda a Mantiqueira. Compara o homem a um parasita e não tem constrangimento ao escrever: “Este funesto parasita é o caboclo, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela, na sua penumbra. À medida que o progresso vem chegando, com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização das terras, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, seu pilão, a pica-pau, o isqueiro, de modo a se conservar sempre na beirada, mudo e sorno”.

Para Lobato, é o homem o detrator da natureza. Pois é ele quem “ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção, ele as derruba impassível, para extrair o mel escondido num oco”.

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Já se desconfiava da União, que só “cuida de casos políticos”. E entendia que o município é que poderia zelar pelas suas matas. Só ele poderia “providenciar eficazmente”, pois só ele “conhece de perto as necessidades locais”. Deles poderia sair a medida prática e simples capaz de enfrentar o “funesto fogo de Agosto”. A ele, portanto, ao município, “o brado de misericórdia da legião de prejudicados”.

Poderia existir um texto mais atual do que esse, que data de cento e dez anos?

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Werther Santana/Estadão
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