Uma das "tradições" de todo final de ano é a avaliação do que ocorreu no período, e a tentação de se tentar antecipar o que tende a acontecer no próximo. E, nessa linha, aqui registramos e compartilhamos alguns aspectos que nos parecem mais relevantes, do ponto de vista do mercado de capitais como um todo, tanto de movimentos, quanto legislação, bem como percepções e possíveis tendências.
O mercado de capitais brasileiro tem vivido anos de bastante variação, alternando períodos de crescimento e até de alguma euforia, com outros de incertezas, cautela, e até de elevado receio. Nesse cenário, 2022 foi um ano muito desafiador.
Os anos de pandemia afetaram o mundo todo, mas, de maneiras bem diferentes, e mesmo o mercado de capitais teve perdas e momentos de grande crescimento no período, com muitas emissões em 2020 e 2021, a despeito da crise geral.
2022 foi um ano bem diferente, com muitos solavancos, pressão de todos os lados, e de muito mais cautela por parte de empresas e de investidores.
E este ano foi, também, de grande produção legislativa e normativa no tocante aos valores mobiliários; e de aprendizado - tanto no que se refere à criação de novas matrizes de riscos e à rápida adaptação a cenários de restrição de insumos, quanto em relação às pressões dos mercados (como na questão da sustentabilidade).
Nosso mercado de capitais ainda é relativamente pequeno e jovem, necessita de maior robustez e de amadurecimento, na busca por mais estabilidade, e ainda sofre muito (mais do que outros) com solavancos econômicos e políticos, tanto domésticos quanto internacionais, brigando com outros, como os de renda fixa e de câmbio, de forma que ainda precisamos ser bastante otimistas, trabalhar muito, e fazer a lição de casa para fortalecer as empresas, o próprio mercado e esse importantíssimo campo de nossa economia.
Se 2020 e 2021 foram anos de elevado número de IPOs por aqui, com grande movimento e crescimento do mercado, 2022 foi um ano de desafios, com menos lançamentos e diversas desistências, e esse cenário complexo deriva, em grande parte, de questões como a alta taxa de inflação (agora com tendência de queda), que, por sua vez, levou a alta também da taxa de juros - combinação que afeta muito a todos, e ao desemprego elevado.
Na "realidade das ruas", o Brasil empobreceu nesse período e o efeito negativo não é apenas humanitário e social, mas também econômico, chegando a todos os mercados.
Em termos mais econômicos, temos que destacar que, especialmente no caso brasileiro, a combinação de alta taxa de juros e subida do câmbio, geralmente leva à queda da bolsa e freia bastante o mercado de capitais, sem contar que neste ano tivemos, ainda, as incertezas e receios decorrentes do período eleitoral, e os subsequentes receios do que ocorrerá com o controle fiscal em 2023.
O próximo ano deve começar bastante lento, ainda aguardando os principais movimentos concretos do novo governo federal e o seu compromisso (ou não) com as questões fiscais, gastos e dívida pública.
Ainda quanto a 2022, é importante destacar que, paralelamente ao que vivenciamos no Brasil, diversas questões internacionais pesaram forte e negativamente neste ano, como a grande inflação nos Estados Unidos, e a pressão pela alta de juros naquele país (com consequências ao redor do mundo), a Guerra da Ucrânia, a alta do preço do petróleo em diversos momentos, a queda/falta de suprimentos (quase generalizada em alguns produtos, e a derivada forte alta de preços), seja em função da própria guerra, seja por conta, ainda, da permanência da crise global sanitária e de seus efeitos na China - uma vez que esse conjunto de questões mundiais também ajudou a levar incertezas, receios e volatilidade ao nosso mercado de capitais.
De outro lado, e noutro sentido, o movimento legislativo foi intenso por aqui, com diversas novidades importantes e impactantes no Mercado de Capitais, em parte decorrentes de elevada atividade da CVM, que editou grande quantidade de normas.
Na esteira, ainda, de 2021, vimos a chegada mais concreta do polêmico Voto Plural, mas 2022 trouxe questões igualmente polêmicas como a obrigatoriedade de divulgação de disputas societárias (mesmo no campo da arbitragem), que, de um lado, demonstra maior transparência, mas, de outro, aumenta o risco do surgimento de notícias que afetem muito as ações das empresas em estágios ainda muito iniciais das demandas; além de colocar em xeque um dos fundamentos da própria arbitragem (que é o sigilo).
A "nova" CVM promete uma grande reformulação em sua maneira de atuar, e indica que deve ser mais moderna, ágil e dinâmica, sustentável e inclusiva, e forte daqui por diante. E neste ano realmente já fez bastante.
Uma CVM mais forte, moderna e ágil, como tem sido prometido (inclusive na divulgação da "Agenda de 100 dias"), de fato tende a fortalecer o mercado de capitais brasileiro - o que precisaremos acompanhar ao longo dos próximos anos.
A Comissão de Valores Mobiliários esteve muito atenta, neste período, também, à principal pauta corporativa da atualidade, abordando a questão do ESG ao determinar maior cuidado, critério e transparência nos relatórios, para que o mercado receba as devidas informações sobre as reais práticas das empresas, na tentativa de se reduzir o risco de "greenwashing" e de divulgação de certas práticas apenas como estratégia de comunicação e de marketing. Entende a CVM que ainda não deve propriamente ditar práticas ESG às empresas, mas cuidar para que os mercados recebam as informações corretas, amplas e verdadeiras sobre o tema.
Esperamos que o ESG conquiste ainda mais relevância em todos os mercados e segmentos, sendo, também, impulsionado, por novas questões legislativas e regulatórias, bem como por iniciativas nas bolsas de valores, sendo uma forte aposta para o que deve chegar com mais força aos mercados nos próximos anos.
O crescimento dos criptoativos também vem sendo acompanhado e, além dos movimentos que a CVM já efetuou, tudo indica que ao longo dos próximos anos venham ainda mais normas sobre o tema - o que também deve ocorrer na legislação societária de forma geral. No caso específico da CVM em 2022, vale destacar o chamado "Parecer CVM sobre Criptoativos", que tende a mexer com os marcados.
Outro importante foco de atenção da CVM neste ano foi, por exemplo, a reformulação do arcabouço regulatório das ofertas públicas brasileiras (em decorrências as Resoluções CVM 160 e 162), ao passo que também o registro de coordenadores de ofertas públicas (Resolução CVM 161) foi normatizado.
Nesse campo, as novidades são muitas, e em vários aspectos relevantes, que merecerão muita atenção dos operadores, das empresas e dos investidores, como a abrangência das ofertas, os ritos de registro das ofertas e os procedimentos a elas relacionados, a publicidade e o material a ela relacionado, os documentos de oferta, além de aspectos dos fundos de investimentos e dos coordenadores das ofertas públicas, dentre outros.
Essas novas diretrizes tendem a simplificar os processos em alguns pontos e torná-los mais organizados em outros, sendo novidades que esperamos que ajudem a fortalecer e a fomentar o mercado nos próximos anos.
Uma das grandes alterações nessa linha foi a substituição da célebre Instrução 400 da CVM, considerada por alguns já um tanto antiga, ao passo que a nova Resolução 160 promete ser mais simples e com menos informação (na esperança de que informações mais importantes sejam destacadas e que, com isso, aumentem as condições de avaliação pelo mercado).
Tivemos, ainda em 2022, novidades importantes na simplificação (e na redução de custos) no tocante às publicações determinadas pela legislação societária brasileira, batalha antiga das empresas, que agora foi finalmente vencida.
No caso específico da CVM, como mencionado acima, as novidades são muitas, mas, provavelmente, os principais aspectos "impactantes" de 2022 em termos de novas normas sejam os chamados "Marcos Legais e Regulatórios das Securitizações", o novo Formulário de Referência, e o novo processo de Oferta de Distribuição de Valores Mobiliários.
Dessa forma, destacamos que o binômio "alterações legislativas - novas normas da CVM", em seu conjunto, foi realmente muito ativo neste ano e que seus efeitos devem facilitar, fomentar e simplificar o mercado, mas para que 2023 seja de fato um grande ano nesse aspecto, será preciso que os cenários internacional e doméstico também sejam (ao menos) estabilizados, pois ainda são muitas as incertezas, especialmente se as economias brasileira e norte-americana continuarem tão voláteis, e a guerra continuar.
A pauta ESG deve seguir forte, e ditando cada vez mais os investimentos e a reorganização de diversos modelos de negócios, em todos os segmentos, tanto por conta de movimentos legislativos e regulatórios, quanto (e talvez principalmente) por pressão dos próprios mercados, da sociedade e dos consumidores.
Negócios que não se adaptem rapidamente a modelos efetivamente mais sustentáveis em todos os aspectos (como energia, água, resíduos, emissões de poluentes, solo, desmatamento etc. - na produção, na comercialização e no uso/aplicação de seus produtos e serviços), que não se atentem para pontos básicos dos direitos humanos e sociais, para a inclusão plena e efetiva (nas estrutura, na gestão e no contato com o cliente), e para o real respeito ao meio ambiente, sofrerão cada vez mais, e os mercados estão acompanhando de perto essa evolução, de maneira que 2023 tende a "cobrar muito" das empresas.
O financiamento necessário para os devidos ajustes (na construção da sustentabilidade) tende a ficar mais simples, mais abundante e com custo mais reduzido, mas, ao mesmo tempo, o custo do dinheiro para as empresas não sustentáveis tende a subir, assim como a perda de clientes e de mercados, e a imagem dessas organizações pode sofrer muito - o que também deve afetar significativamente os valores mobiliários.
Acreditamos que o arcabouço normativo brasileiro esteja preparado, e que há muitas empresas de olho no mercado de capitais à espera de oportunidades concretas, de forma que se a economia e a política permitirem, e se a situação fiscal brasileira não se deteriorar, o próximo ano pode vir a ser de recuperação. Acompanhemos ativamente!
*Leonardo Barém Leite é advogado corporativo em São Paulo, sócio sênior de Almeida Advogados, presidente da Comissão de Direito Societário, Governança Corporativa e ESG da OAB/SP-Pinheiros, membro da Comissão Jurídica do IBGC e integrante do IDSA (Instituto de Direito Societário Aplicado), além de professor e autor de diversas obras sobre direito societário e corporativo
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