Há pouco tempo, se comentássemos que um banco recebeu volume considerável de depósitos e que detém nos seus ativos grande quantidade de títulos públicos com prazos longos e taxas prefixadas, emitidos pelo governo dos EUA, a reação do leitor provavelmente tenderia à monotonia. Até que um banco quebrou e, agora, essas semelhanças com ele assustam e movimentam os mercados financeiros.
Estamos, é claro, falando do Silicon Valley Bank (SVB), que colapsou em meio a uma "corrida bancária", com um fluxo de saques muito superior ao suportável. Esse tipo de fenômeno é bem estudado e conhecido na literatura econômica. Na realidade, é intrínseco à atividade dos bancos comerciais o que chamamos de "transformação de maturidade": os bancos recebem depósitos que são eminentemente de curto prazo e concedem empréstimos de longo prazo. Isso significa que há um descasamento de prazos que expõe os bancos ao risco de não terem liquidez suficiente em um dado momento do tempo. E esse risco, no caso do SVB, se materializou em sua quebra.
Uma pergunta natural sobre esse processo seria o motivo de bancos, que sabem os riscos que correm, continuarem com o mesmo comportamento e assumirem os mesmos (ou crescentes) riscos. Bem, precisamos lembrar que os bancos são provedores de liquidez e auferem retornos a partir dos spreads entre a taxa que pagam pelos depósitos e que recebem dos títulos menos líquidos de prazo mais longo. Quando há aumentos das taxas de juros, o que ocorre?
Primeiro, isso impacta positivamente as taxas de depósitos já que há uma maior quantidade demandada por eles. Ao mesmo tempo, o valor dos títulos menos líquidos diminui. Só que como o aumento das taxas dos depósitos é menor do que a remuneração dos títulos menos líquidos, o banco aceita essa perda de curto prazo com o aumento dos juros porque os spreads também aumentam, o que faz com que, ao longo do tempo, a instituição recupere as perdas.
Então por que todo esse alvoroço? A principal hipótese por traz do mecanismo descrito no parágrafo anterior é que os bancos poderão suportar os efeitos dos juros pelo descasamento dos prazos, porque (i) novos depósitos estão entrando e, principalmente, (ii) porque não precisam marcar a mercado alguns ativos que são classificados como "Held-to-Maturity". Aí que entram os problemas do SVB.
O banco da Califórnia fez uma má-gestão dos riscos apontados acima, mas piora. As boas práticas financeiras geralmente apontam para a diversificação como alternativa para diminuir o risco. Porém, ao se especializar em prover serviços para startups, o banco concentrou a fonte dos seus depósitos e, assim, ficou exposto não apenas aos riscos gerais da economia, mas também aos riscos específicos desse setor, que tende a ser muito volátil.
No último ano as empresas de tecnologia, que antes haviam recebido uma considerável soma de recursos de gestores de capital de risco que apostam nessas inciativas, passaram a fazer retiradas para pagarem as suas contas, já que o capital parou de fluir para elas com o aumento da taxa de juros global. Para fazer frente aos saques e às perdas que o SVB vinha sofrendo, a instituição teve que se desfazer de alguns ativos. Isso aconteceu, justamente, quando havido ocorrido o já mencionado aumento das taxas de juros. Portanto, na hora de vender, o banco teve que marcar a mercado e revelar que o valor dos seus ativos havia despencado em comparação a quando eles foram adquiridos.
Os reguladores nos EUA agiram rápido, garantiram depósitos, mas não evitaram (propositadamente) as perdas de acionistas. Eles aprenderam com a crise de 2008 que a reação tem que ser tempestiva para conter o medo que leva ao contágio financeiro, ainda que os fundamentos sejam sólidos.
Mas fica a dúvida: será que os reguladores e os analistas deixaram escapar outros bancos que podem estar com problemas? Essa pergunta pode ajudar a entender os questionamentos da própria condução da política monetária nos EUA. Será que o Federal Reserve terá que escolher entre a estabilidade financeira e a estabilidade de preços? Torçamos para que os eventos recentes sejam apenas pontuais e isolados.
*João Ricardo Costa Filho é PhD em Economia pela Universidade do Porto, professor de macroeconomia do Ibmec/SP e pesquisador na Universidade Nova de Lisboa
*Reginaldo Pinto Nogueira Júnior é PhD em Economia pela University of Kent e diretor sênior do Ibmec
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