O Varieties of Democracy Institute (V-Dem) publicou, no último mês de março, seu 8º Relatório anual sobre a Democracia (https://v-dem.net/). Os relatórios pretendem medir o estado global da democracia a partir de 7 princípios (eleitoral, liberal, majoritário, consensual, participativo, deliberativo e igualitário), 60 índices e 500 indicadores, baseados tanto em dados objetivos (por exemplo, resultados eleitorais), como em uma abrangente aferição de opiniões de especialistas de todo o mundo.
A principal conclusão do Relatório é que a autocratização continuaria a ser uma tendência dominante, embora em um ritmo mais lento. Tais processos estariam em curso em 42 países, onde residem 2,8 bilhões de pessoas (35% da população mundial), sendo a Índia o caso mais relevante, pois compreende 18% da população mundial. Registrou-se piora tanto no “componente” liberdade de expressão, quanto nas condições para eleições limpas e justas. O Relatório destaca que as eleições constituem eventos críticos que podem tanto fazer avançar como interromper processos de autocratização e democratização – e em 2024 haverá eleições nacionais em 60 países (incluindo os EUA e a Índia).
Os resultados do Relatório e suas interpretações são, evidentemente, sujeitos a críticas. Inclusive, no próprio documento consta um texto assinado por quatro dos pesquisadores principais do V-Dem Project, que reconhecem a qualidade de seus dados, mas discordam de parte de suas interpretações em função de determinadas escolhas metodológicas, como a utilização do peso da população (e não o número de países) como critério para determinar a tendência de autocratização ou democratização. Por exemplo, o fato de a Índia enfrentar um processo de autocratização acaba por influenciar demasiadamente o índice global, o que geraria uma interpretação muito pessimista do cenário atual (excluído o caso da Índia do Índice de Democracia Eleitoral, os resultados se alteram significativamente). Assim, ponderam que de fato há motivos para preocupação com a democracia em muitos países, inclusive alguns muito grandes, mas os dados disponíveis indicariam muito mais uma interrupção da expansão da democracia do que propriamente uma tendência de regressão atual e futura.
O Relatório também discute os casos de U-turn – países que se encontravam em processos de autocratização e que conseguiram revertê-los em diferentes graus. O Brasil é apresentado como o mas importante desses casos. Os principais elementos que teriam possibilitado a reversão do processo de autocratização que esteve em curso a partir da eleição de Bolsonaro seriam: a atuação do TSE, do STF e de diferentes organizações da sociedade contra a desinformação, especialmente no que se refere à confiabilidade do sistema eleitoral; uma ampla aliança de oposição “pró-democracia”; a independência do Poder Judiciário, antes, durante e após as eleições de 2022; o apoio internacional ao resultado das eleições; o reconhecimento do resultado das eleições por todas as lideranças das mais importantes instituições brasileiras; e a ausência de apoio aos projetos golpistas pela maioria do comando das forças armadas.
De fato, nessa perspectiva, o Brasil pode ser considerado um caso paradigmático de U-turn, considerando-se, inclusive a aplicação da penalidade de inelegibilidade a Bolsonaro pela Justiça Eleitoral, bem como sua potencial responsabilização penal a partir das investigações em curso na Polícia Federal. Isso fica ainda mais evidente quando se compara o caso brasileiro com o que se passa nos EUA, onde Trump, que também responde a muitos processos, disputará eleições presidenciais que, de acordo com as pesquisas atuais, deverão ser bastante acirradas. Caso seja vencedor, poderá ocorrer o que os autores do Relatório denominam de Bell-turn, ou seja, seria retomado o processo de autocratização que esteve em curso durante o Governo Trump e que foi interrompido pela eleição de Biden.
Apesar da inelegibilidade de Bolsonaro, isso deve servir de alerta para o Brasil. Não há garantias de que uma nova eleição não possa ser um evento crítico a desencadear um Bell-turn. O populismo de extrema direita segue vivo e tem outras lideranças que podem tentar ocupar o espaço deixado por Bolsonaro. E, mais importante, todos os fatores estruturais da crise da democracia brasileira continuam presentes.
Por exemplo, não obstante os esforços empreendidos, ainda estamos distantes de uma regulação jurídica eficaz que impeça a disseminação de discurso de ódio e desinformação pelas mídias digitais, e muito menos de arranjos judídico-institucionais de mediação política compatíveis com os novos padrões de ação política decorrentes da lógica dessa nova forma de comunicação. Da mesma forma, a polarização em torno de questões de moralidade privada segue em alta intensidade, e sem que as instituições sejam capazes de promover satisfatoriamente a mediação dos conflitos dessa natureza – pelo contrário, têm sido e poderão se tornar objeto de ainda maior tensão entre o STF e o Congresso Nacional. A partir da posse de Lula tem ocorrido uma desmilitarização da política, mas a questão da pretensa tutela militar sobre a democracia está longe de estar superada, tanto no plano federal como, de forma mais grave, por exemplo, na militarização do governo estadual, na politização da polícia e no crescimento da violência policial no estado de São Paulo.
As mudanças institucionais e políticas ocorridas durante os Governos Temer e Bolsonaro (algumas anteriormente), por sua vez, têm tornado a governabilidade cada vez mais difícil, com um aumento do poder do “Centrão” e sua combinação de agendas reacionárias e parasitárias. A hegemonia do neoliberalismo, a mundialização financeira e os crescentes impasses na governança global também limitam sobremaneira as possibilidades de direção política. Enfim, se por um lado as últimas reformas do sistema partidário-eleitoral estão promovendo uma redução quantitativa dos partidos com representação no Congresso Nacional, o que é positivo e poderá se ampliar no decorrer do tempo, por outro, não são observadas evoluções qualitativas, ou seja, permanecem a fratura entre partidos e cidadãos, bem como múltiplas formas de corrupção, e os partidos não conseguem articular programas coerentes que representem alternativas políticas substantivamente distintas.
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