No ano passado, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ("ADO 67"), proposta pelo Procurador Geral da República, em face da mora do Congresso Nacional - de quase 35 anos - em editar Lei Complementar ("LC") estipulando normas gerais para a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação ("ITCMD") nas hipóteses em que (i) o doador tiver domicílio ou residência no exterior e (ii) o de cujus possuísse bens, fosse domiciliado ou residente no exterior, ou ainda se o inventário fosse processado fora do país.
O fundamento desta ação foi a mora legislativa do Congresso em editar a referida LC, imprescindível nas situações acima indicadas, em razão da previsão constante no artigo 155, §1º, III, alíneas "a" e "b" da Constituição Federal ("CF"), o que impossibilitaria (ou deveria impossibilitar) os Estados e o Distrito Federal de cobrarem o ITCMD nas hipóteses de doações e heranças no exterior, ensejando, segundo narrou o Procurador Geral "prejuízos aos cofres públicos e à autonomia dos entes regionais da Federação".
A ADO 67 foi julgada procedente, tendo o STF, à unanimidade de votos, declarado inconstitucional a omissão na edição da LC e estabelecendo o prazo de 12 (doze) meses, a contar da data da publicação da ata do julgamento (09.06.2022), para que o Congresso adote as medidas legislativas necessárias.
Em razão da omissão do Congresso, fato é que os Estados há tempos exigem esta cobrança com base em normas locais. O levantamento realizado pela própria Procuradoria-Geral da República constatou que pelo menos 24 Estados já cobravam o ITCMD sobre doações e heranças processadas no exterior.
A principal justificativa da cobrança foi o exercício de uma aparente prerrogativa constitucional (artigo 24, CF/88), que prevê que, ante a inexistência de uma LC, os Estados e o Distrito Federal poderiam exercer competência legislativa plena, de forma a atender suas peculiaridades - fundamento este afastado pelo STF.
Fato é que esta exigência sem base em Lei Complementar foi objeto de inúmeros questionamentos pelos contribuintes, o que levou o STF a definir a questão.
Assim, em julgamento realizado em 2021, o STF analisou o RE nº 851.108/SP ("Tema 825"), em sede de repercussão geral (cujo resultado da decisão deve ser aplicado a todas as ações propostas sobre o tema), e fixou a seguinte tese: "é vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional"[1].
E como a decisão apena afasta as cobranças veiculadas por normas dos Estados e Distrito Federal, foi necessária a propositura da ADO 67 para se reconhecer a inconstitucionalidade por omissão e determinar que o Congresso adote medidas para sanar esta questão.
Contudo, em que pese restar pouco mais de três meses para o cumprimento da decisão do STF, os projetos que já tramitavam na Câmara (Projetos de Lei Complementar nºs 363/2013, 37/21 e 67/21), que visam a validar a cobrança do ITCMD sobre heranças e doações no exterior, ainda não foram aprovados - embora estejam tramitando em regime de prioridade.
Será preciso aguardar, portanto, o texto a ser aprovado pelo Congresso para que se tenha a confirmação de todos os requisitos e situações que estarão abarcadas pela futura LC e até mesmo as respectivas alíquotas.
Nesse sentido, lembramos que a alíquota máxima fixada pelo Senado Federal (Resolução nº 9/1992), por previsão constitucional (art. 155, §1º, inciso IV, CF) atualmente é de 8% (oito por cento). Contudo, também está em trâmite no Senado Federal o Projeto de Resolução nº 57/2019, que pretende elevar o teto máximo da alíquota do ITCMD para 16% (dezesseis por cento).
Embora estas alíquotas já pareçam exageradas para o brasileiro, fato é que há países que preveem tributação muito mais agressiva em situações semelhantes. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos da América ("EUA") no tocante ao imposto causa mortis.
Ao contrário do Brasil, relativamente à tributação sobre a herança, os EUA impõem tributação no âmbito federal, tanto de cidadãos americanos, quanto de não cidadãos não residentes, mas que possuam determinados ativos em solo americano.
Enquanto o cidadão americano, residente ou não, sofrerá tributação sobre os ativos que possui tanto naquele país, quanto em qualquer outro lugar do Globo, os não residentes não cidadãos americanos sofrerão a tributação apenas sobre determinados bens que possuam em território americano, como imóveis, bens pessoais tangíveis (excluindo-se algumas obras de arte) e ações de sociedades constituídas de acordo com as leis americanas, mesmo nas hipóteses em que possuam os certificados no exterior ou os registre em nome de um custodiante.
Nesses casos, para fins de cobrança deste tributo, tanto para cidadãos americanos que residem ou não nos EUA, bem como para não cidadãos americanos e não residentes, há uma faixa inicial de isenção (para cidadão americano a faixa de USD 12.92 milhões e para não residente e não cidadão americano a faixa de USD 60 mil) que, uma vez ultrapassada, deverá observar a tabela progressiva, cujas alíquotas então vigentes podem variar entre 18% (valores a partir de U$ 10.000,00) e 40% (valores a partir de U$ 1.000.000,00).
Uma possível justificativa para alíquota de ITCMD tão alta seria o incentivo do consumo em vida, com o consequente aquecimento da economia, evitando, ainda, uma possível geração de herdeiros pouco produtiva. Outros países seguem essa mesma[2] linha de raciocínio com a imposição de alíquotas altas de ITCMD (como, por exemplo, Japão, Alemanha e França).
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ("OCDE")[3] publicou recentemente um relatório em favor da cobrança do ITCMD como instrumento importante dos países para aumento de receita e igualmente como forma de reduzir as desigualdades sociais.
Mesmo sendo bastante louvável essa justificativa, para o Brasil onde a carga tributária já é uma das maiores do mundo e representa um terço do PIB[4], em nossa opinião, a alíquota do ITCMD precisa ser bastante moderada para não ocorrer justamente o inverso das finalidades pretendidas.
Só para lembrar que, no fim do ano passado, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou o Projeto de lei[5] nº 511/2020 que reduzia a alíquota do ITCMD de 4% para 1% com a justificativa da alta carga tributária imposta ao cidadão e a redução como motivo de aquecimento da economia. No entanto, no início desse ano, o Governador vetou o projeto sob a justificativa de possível perda de arrecadação.
Enfim, embora a discussão envolvendo o ITCMD seja complexa, lembrando que é um imposto de competência dos Estados e não da União, o que pode gerar eventual Guerra Fiscal, recomendando-se, assim, um estudo detalhado para alterações mais significativas, aguarda-se neste momento a edição da tão esperada LC sobre a exigência do imposto sobre heranças e doações provenientes do exterior.
Espera-se que o Poder Legislativo, a despeito da pressão dos Estados para aumentar a arrecadação, adote alíquotas que sejam progressivas, justas e que atendam ao princípio da capacidade contributiva, princípios estes assegurados pela Constituição.
*Marco Behrndt, Marilia Rasi e Marcus Segnini são, respectivamente, sócio da área tributária do Machado Meyer Advogados, advogada sênior da área tributária do Machado Meyer e sócio da assessoria tributária da KIS Consult nos Estados Unidos da América
[1] E o mesmo entendimento foi replicado pelo STF no julgamento de diversas ADIs, tendo reputado inconstitucionais as leis locais (p.e. ADI nºs 6.826/RJ, 6.840/MS e 6.818/PR).
[2] http://arte.folha.uol.com.br/graficos/d4A1J/
[3] https://www.oecd.org/tax/tax-policy/inheritance-taxation-in-oecd-countries-e2879a7d-en.htm
[4]https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/04/04/tesouro-nacional-estima-que-carga-tributaria-avancou-para-339percent-do-pib-em-2021.ghtml
[5] https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000331890
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