Prestes a completar 89 anos, neste próximo dia 12, o advogado Ives Gandra Martins, professor emérito da Faculdade de Direito do Mackenzie, vislumbra um 2024 mergulhado em ceticismos e desconfianças. Especialmente quando espreita tendências do Supremo Tribunal Federal, que ele qualifica cada vez mais ‘politizado’. “Receio que o Supremo continue invadindo a competência legislativa do Congresso, gerando tensão nas relações com o Parlamento”, prevê.
Não agrada ao lendário jurista de tantas jornadas e embates, por exemplo, o fato de que ministros estão chegando à Corte pelo critério ‘amigo do presidente da República’. Ele está se referindo a Flávio Dino, o mais recente indicado, que assume dia 24 - por enquanto, Dino ainda exerce a função de ministro da Justiça e Segurança Pública de Lula, de quem é muito próximo.
Indagado sobre sua expectativa com o desempenho do novo ministro em cadeira tão distinta do Judiciário, Ives revela incredulidade. “Espero que prevaleça o magistrado e não o político, mas também tenho receio que não.”
Em entrevista ao Estadão, Ives Gandra Martins discorre sobre o Supremo dos dias atuais e aponta para um caminho que reprova. “O STF tem invadido a competência legislativa, tanto do Congresso como do Executivo.”
Se diz contra a fixação de mandato dos ministros, como sugerido por parlamentares insatisfeitos com o que chamam de ‘intromissão’ do Poder vizinho em questões inerentes ao Legislativo, mas tem sugestão a dar. “Não sou favorável a mandatos, pois traria maior instabilidade, mas gostaria que os ministros não fossem escolhidos com o livre arbítrio de um homem só, e sim de uma lista de 18 nomes indicados 6 pelo Conselho Federal da OAB, 6 pelo Ministério Público (3 Estadual e 3 Federal) e 6 pelos Tribunais Superiores (2 STF, 2 STJ e 2 TST).”
Entre uma e outra emenda à conduta da Corte maior, o professor carrega uma certeza: 8 de janeiro não foi golpe de Estado. “Sem armas e sem as Forças Armadas seria impossível um golpe”, avalia.
Aos seus olhos, a marcha daquela turba sobre a praça dos poderes ‘foi uma baderna semelhante ao que o PT e MST fizeram na Câmara dos Deputados na Presidência de Michel Temer, com destruição de suas dependências e com punições próprias de uma baderna e não de um golpe’.
LEIA A ENTREVISTA DE IVES GANDRA AO ESTADÃO
Qual a expectativa do sr para 2024 com relação ao Supremo Tribunal Federal?
Tenho a esperança de que o STF volte a ser o guardião da Constituição, conforme definido no artigo 102 da Constituição Federal de 1988, como à época dos ministros Moreira Alves, Oscar Corrêa, Sydney Sanches ou Cordeiro Guerra, pois qualidade técnica e ética, todos possuem. Sem invadir a competência do Legislativo, nos termos do artigo 49 inciso XI ou 103, §2º da Lei Suprema. Tenho, todavia, receio que continue invadindo a competência legislativa do Congresso e gerando tensão nas relações com o Parlamento.
O sr. prevê mudança importante na condução dos julgamentos da Corte com a chegada do ministro Flávio Dino?
O ministro Dino foi juiz federal concursado. Como participei de duas bancas examinadoras de juiz federal em São Paulo (1º e 11º concursos do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região) sei da dificuldade para ser magistrado. Cada concurso durou um ano. Exigíamos o máximo dos candidatos, alguns milhares. Espero que prevaleça o magistrado e não o político, mas também tenho receio que não.
Confia que Flávio Dino terá uma atuação independente ou será um ministro alinhado ao governo Lula e a pautas de interesse do Palácio do Planalto?
Lula espera que seja alinhado com o Palácio, pois disse que teria um ministro comunista e político. Minha esperança é que sabendo da importância de ser ministro e já tendo sido magistrado, é que se curve às exigências do direito e não da política, mas tenho receio do contrário.
Ele deve se dar por impedido nesses casos?
Deveria, mas a decisão será sempre dele.
Qual a sua recomendação para que Dino exerça um papel eminentemente de magistrado?
Que siga o exemplo daqueles que fizeram a história da Suprema Corte. Talvez, o ministro Moreira Alves seja o melhor modelo. Quando saíamos em congressos jurídicos, onde sempre se negava a falar ou responder sobre questões submetidas ao Tribunal, à rua ou para jantar, todos olhavam com admiração e diziam ‘lá está um ministro do Supremo’. É algo que já não acontece com os ministros da Corte. Tenho também o receio que não siga.
Atribui-se um acentuado protagonismo ao Supremo, nos últimos meses, especialmente. Qual a sua avaliação?
Concordo. Ao adotarem, os magistrados, as correntes próprias das Cortes Constitucionais de sistemas parlamentares de governo, que não chegam a ser parte efetiva do Poder Judiciário, como da ‘jurisprudência constitucional’, ‘consequencialismo’ ou ‘neoconstitucionalismo’, tem invadido a competência legislativa, tanto do Congresso como do Executivo. “Data máxima vênia”, não foi isto que os Constituintes desejaram para o STF, colocando no Poder Legislativo a faculdade de zelar por sua competência normativa perante o Judiciário. Considero que, ao assim agirem, descumprem a Constituição deixando de ser só guardiões para serem legisladores suplementares, quando não, primários.
Senadores e deputados têm feito severas críticas à Corte e defendem, inclusive, fixação de mandato para seus ministros. O sr. concorda? Por quê?
Não sou favorável a mandatos, pois traria maior instabilidade, mas gostaria que os ministros não fossem escolhidos com o livre arbítrio de um homem só, mas sim de uma lista de 18 nomes indicados 6 pelo Conselho Federal da OAB, 6 pelo Ministério Público (3 Estadual e 3 Federal) e 6 pelos Tribunais Superiores (2 STF, 2 STJ e 2 TST).
Outros reputam necessária uma mudança na forma de composição e escolha de ministros do STF. Alegam que as indicações obedecem critérios políticos e recaem sobre amigos do presidente da República. Qual a sua sugestão?
De acordo que a escolha, nos últimos tempos, tem sido de amigos do presidente da República. À minha sugestão acrescento que dos 18 nomes indicados, 8 seriam magistrados e 3 com alternância de indicação do Ministério Público e da Advocacia.
Reconhece que o STF se tornou alvo de ataques porque sufocou o 8 de Janeiro?
8 de janeiro não foi golpe de Estado porque sem armas e sem as Forças Armadas seria impossível um golpe. Basta dizer que um punhado de soldados, sem um tiro, prendeu mais de 1.700 manifestantes. Foi uma baderna semelhante ao que o PT e MST fizeram na Câmara dos Deputados na Presidência de Michel Temer, com destruição de suas dependências e com punições próprias de uma baderna e não de um golpe. A insistência do STF de que teria sido um golpe fracassado não resiste aos fatos, sendo um dos motivos de desgaste da imagem da Corte perante a opinião pública.
Como vê a atuação do Supremo nesse episódio?
À evidência, considero exageradas penas de pessoas sem nenhum passado criminal. 17 anos para pais de família e manifestantes que, pela ocasião, se tornaram baderneiros e teriam que ser punidos por isto, indiscutivelmente com penas muito menores. Não sei se o antigo STF teria uma visão semelhante ao do atual STF ao estudar o caso.
A Constituição diz que o Supremo é o guardião da Constituição. O sr. concorda que, nesse papel, o Supremo agiu certo ao conter atos antidemocráticos e a violência de golpistas contra a sede dos poderes?
Estou de acordo que teria que conter. Os atos não são próprios de uma democracia adulta. Continuo, todavia, convencido, por ter sido durante 33 anos professor da Escola do Comando e Estado Maior para coronéis, entre os quais, no fim do ano, seriam escolhidos os generais de brigada, que nunca houve o menor risco de golpe, algo que dizia desde agosto de 2022. Por isto, considero que teria que punir e, a meu ver, por juízes de 1ª instância, à falta de foro privilegiado, mas por baderna e não por golpe.
Muitos advogados reclamam de uma suposta ‘politização’ do STF e argumentam que isso põe em xeque a credibilidade e a imparcialidade da Corte. O que o sr. pensa?
Não só muitos advogados, mas parcela ponderável da população, principalmente após julgamentos para privação de liberdade serem em sessões virtuais, onde o advogado faz a sustentação, enviada um dia antes, sem saber se será ou não ouvida por cada ministro em suas salas. Considero que a ‘ampla defesa’, assegurada pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição foi consideravelmente reduzida, numa violação do texto maior. O adjetivo ‘ampla’ da Constituição não poderia ser tornado menos ‘ampla’ ao retirar a sustentação oral perante todos os ministros, e sendo ouvida por todos os brasileiros, se quisessem. O STF reescreveu a Constituição no artigo 5º inciso LV colocando um redutor na dicção constitucional ao tornar a defesa ‘menos ampla’. É a opinião de um velho ex-professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, que se sente orgulhoso de ostentar o título de professor emérito da Instituição.
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