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Opinião|O uso de novas tecnologias na constituição do devedor em mora

A constituição em mora mediante meios eletrônicos não é apenas uma possibilidade, mas uma prática já estabelecida e amplamente utilizada, devendo ser estendida igualmente às instituições bancárias

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Por Laís Pagnoncelli, Rafaella Cristina Ferreira e Thaís Souza de Godoi

As transformações sociais e os avanços tecnológicos remodelaram profundamente as práticas jurídicas no último século. As demandas urgentes que necessitam de uma comunicação cada vez mais rápida acabam ficando desalinhadas com a norma abstrata originária. Por essa razão, é que se evidenciou a necessidade de o sistema jurídico ser observado sobre o prisma de uma sociedade cada vez mais veloz e interconectada com o mundo digital.

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Com base neste cenário, é que se fundamentou a necessidade da propositura do anteprojeto do Código Civil entregue ao presidente do Senado em abril de 2024, visando a inclusão de inúmeras matérias reguladas após sanção do Código Civil (CCB) de 2002.

Além de corrigir conceitos e procedimentos defasados que refletiam a realidade capturada no contexto da entrada em vigor do CCB/2002, a ampliação normativa do art. 397 dessa legislação melhor sistematiza a constituição em mora do devedor, inserindo a previsão da interpelação eletrônica.

A referida alteração tem como um de seus objetivos modernizar o procedimento legal, tornando-o mais eficiente e alinhado com as práticas contemporâneas de comunicação.

Muito embora a reforma do CCB mostre-se inegavelmente necessária, não se pode negligenciar que a nova redação do art. 397, ao permitir a constituição em mora do devedor mediante interpelação eletrônica, traz à nova codificação questões legais e práticas que devem ser melhor avaliadas. Neste ponto, é que se inicia um novo desafio, a fim de garantir a eficácia desta nova normativa e a comprovação valida da ciência inequívoca do devedor, a partir da interpelação realizada por meios eletrônicos, como e-mail ou aplicativos.

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Vale lembrar que a mora pode ser conceituada como o inadimplemento de uma obrigação, seja pelo credor (mora accipiendi) ou pelo devedor (mora solvendi), em relação ao tempo, à forma e ao lugar da obrigação. Conforme disposto no art. 364 do CCB, para podermos falar em mora, é imprescindível o inadimplemento quanto: a) ao pagamento de um valor; b) à entrega de uma coisa; ou c) à execução ou abstenção de determinada ação.

Superada a distinção, se faz necessário determinar o momento em que a mora se configura. No caso da mora solvendi, quando se trata de uma obrigação com prazo, a mora é automática, sendo definida pela doutrina como mora ex re (art. 397, caput, CCB), na qual não se exige a interpelação, pois, verificando o termo da obrigação, o simples advento do dies ad quem (dia seguinte) é suficiente para constituir o devedor em mora.

Por outro lado, para as obrigações sem prazo, a mora depende de interpelação judicial ou extrajudicial, sendo esta a única forma de constituir o devedor em mora. Esta é a disposição atual do parágrafo único, do artigo 397 do CCB, conhecida como mora ex persona, que somente se configura quando o devedor é formalmente interpelado.

Considerando os meios de interpelação disponíveis à época da promulgação do CCB de 2002, em se tratando de mora ex persona, dois cenários eram possíveis: (i) a interpelação judicial, compreendida como a citação, intimação e notificação judicial, ou; (ii) a interpelação extrajudicial, por meio de protesto, carta registrada com aviso de recebimento, telegrama, etc. Para o que importa neste último cenário é que a notificação extrajudicial, por si só, não é requisito para a constituição do devedor em mora, e sim a comprovação da ciência inequívoca do devedor.

Ocorre que, desde a entrada em vigor do CCB/2002 já se passaram 22 anos, de modo que muitas previsões legais já não traduzem as necessidades de uma sociedade cada vez mais tecnológica. Como contraponto, temos o CPC/2015 que já reflete a realidade atual, ao dar preferência a realização de procedimentos e atos na forma eletrônica. Sensível a essas mudanças e tendências é que o anteprojeto do CCB traz novas disposições, a fim de incorporar essa nova realidade, especialmente na forma de comunicação por meio eletrônico para constituição da mora.

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Diante da problemática dos métodos “tradicionais” de interpelação, da nova realidade social e do avanço tecnológico, a proposta de ampliação do art. 397 do CCB, inserida na reforma, possibilita que as partes admitam, por escrito, que a interpelação seja feita por meios eletrônicos (e-mails e dos aplicativos de conversas on-line). Ou seja, com relação às formas de comunicação, o anteprojeto apresenta claro intuito de conferir operabilidade ao direito positivado na sociedade da informação.

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Com isso, os meios tecnológicos caracterizam-se como ferramentas para a simplificação na comunicação, todavia, sem descuidar da segurança jurídica e garantias do devedor. Pode-se pensar aqui, sob um aspeto geográfico, no exemplo das inúmeras dificuldades para interpelação por escrito do devedor, quando esse vive em regiões interioranas, onde há dificuldade de entrega da notificação. Assim, a facilidade de acesso às tecnologias potencializa a abrangência e eficácia na aplicação da lei, garantindo que a distância geográfica ou identificação de domicílios não seja um impedimento à justiça.

Todavia, a implementação de alterações, como a proposta pelo anteprojeto, não está isenta de desafios. A autenticidade e segurança das comunicações eletrônicas são preocupações cruciais, porquanto é indispensável e fundamental a garantia de que as notificações sejam enviadas e recebidas sem interferências, bem como que sua integridade seja preservada ao longo do processo.

Como exemplo, o que demandaria mais cautela são os contratos de adesão, os quais não são paritários. Isso porque, diante da vulnerabilidade do consumidor, a clareza e objetividade das informações é de suma importância. Além disso, como bem assinalado no acórdão de REsp nº. 2.056.285/RS, de relatoria da ministra Nancy Andrigui, “não se pode ignorar que o consumidor, em muitas hipóteses, não possui endereço eletrônico (e-mail) ou, quando o possui, não tem acesso facilitado a computadores, celulares ou outros dispositivos que permitam acessá-lo constantemente e sem maiores dificuldades, ressaltando-se a sua vulnerabilidade técnica, informacional e socioeconômica”.

Nesse contexto, a fim de proteger os hipossuficientes (vulnerabilidade técnica, informacional e jurídica), mas sem deixar de fazer uso de meios eletrônicos que são indiscutivelmente mais céleres, é imprescindível a inserção de normas técnicas e regulamentações claras que definam os parâmetros e métodos aceitáveis - como a necessidade de indicação e ciência expressa do fornecimento de um e-mail - para comunicação.

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Sobre o tema, a jurisprudência, em especial do STJ, vem se firmando no sentido de admitir a utilização de notificações eletrônicas, desde que respeitados alguns pressupostos. Em decisão recente, a 4ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 2.063.145, de relatoria da ministra Isabel Gallotti, levou em consideração o contexto da era digital, para o fim de considerar válida a notificação do consumidor por meio eletrônico (e-mail) previamente à sua inscrição em cadastro de proteção ao crédito. A decisão é um marco importante, pois não afeta somente como as notificações eletrônicas de inadimplência podem ser legalmente enviadas, mas também como as comunicações legais devem ser executadas e entendidas em um ambiente cada vez mais digital.

Cumpre ressaltar que o ministro Marco Buzzi abriu divergência no julgamento para entender que apenas é possível considerar válida a notificação por e-mail, desde que fique comprovado que o consumidor, de fato, “abriu” a mensagem. Assim, o ministro estabeleceu que, para que notificação eletrônica seja considerada válida, devem ser observados critérios, dentre eles: a) Legalidade: a notificação deve estar em harmonia com leis aplicáveis sobre comunicações eletrônicas e notificações judiciais ou extrajudiciais; b) Autenticidade: os mecanismos devem assegurar a identidade do remetente e do destinatário da notificação; c) Segurança: proteções adequadas devem ser implementadas para garantir que a notificação não seja interceptada ou alterada; d) Confirmação de recebimento: o meio eletrônico utilizado permita confirmar que o devedor recebeu a notificação, seja por confirmação de leitura ou por outros meios técnicos.

Portanto, o que se vê é a preocupação de que tais métodos estejam em consonância com a legislação, em especial para que a mora seja constituída de maneira válida, sendo indispensável a utilização de mecanismos que comprovem o recebimento e ciência do ato pelo seu destinatário.

Tendo em vista que, há algum tempo, os tribunais têm tratado sobre a constituição do devedor em mora por meios eletrônicos de forma cautelosa e por analogia, é que se insere a proposta do anteprojeto do CCB.

De outro lado, é preciso pontuar os aspectos positivos do uso da notificações eletrônicas. Aqui, temos como exemplo a dificuldade que as instituições bancárias enfrentavam para constituir os devedores em mora, uma vez que se exigiam procedimentos legais rígidos e complexos para a comprovação da validade das notificações extrajudiciais encaminhadas para estes fins.

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A falta de atendimento a essas exigências acabava por resultar em nulidades que comprometem a eficácia das ações de cobrança. Neste ponto, a ausência de uma constituição regular de mora acabava por impedir a execução de garantias e dificultar a recuperação de créditos.

Considerando que as cédulas de crédito bancário são, em sua maioria, caracterizadas como títulos executivos extrajudiciais, a análise da constituição da mora deve se ater ao termo inicial da inadimplência contratual. Isso exige que a Instituição bancária determine com precisão o momento exato da inadimplência para tomar as medidas legais adequadas, minimizando riscos de contestação e nulidade do procedimento executivo.

Por essa razão, os meios tradicionais para constituição em mora tornam-se obsoletos, demandando que a lei se adeque para acompanhar uma sociedade que utiliza preponderantemente os meios eletrônicos de comunicação.

Nesse sentido, a 4ª Turma do STJ, no julgamento do REsp n. 2.087.485/RS, proferido em 23.04.2024, reconheceu que a notificação extrajudicial realizada por e-mail cumpre a exigência legal (constituição em mora) para o ajuizamento de busca e apreensão. Para ser considerada válida, a notificação, necessariamente, precisa ser enviada para o endereço eletrônico informado no contrato, ficar atestada a autenticidade do conteúdo da mensagem e que fique comprovada a sua entrega efetiva. Na decisão, o ministro relator Antonio Carlos Ferreira ponderou que a falta de regulamentação normativa sobre as notificações realizadas por meio eletrônicos não pode ser impeditivo para a sua utilização, “sob pena de subutilização da tecnologia desenvolvida”.

Portanto, a constituição em mora mediante meios eletrônicos não é apenas uma possibilidade, mas uma prática já estabelecida e amplamente utilizada, devendo ser estendida igualmente às instituições bancárias. Assim, a previsão contratual no sentido de que os endereços eletrônicos das partes sirvam para recebimento de notificação, além de garantir maior eficiência e conformidade às exigências legais, poderá minimizar riscos de nulidade, melhorando a eficácia na recuperação de créditos.

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Em que pese a necessidade de regulamentação do uso dos meios digitais para constituição da mora, a alteração normativa apresentada no anteprojeto oferece diversas vantagens: a interpelação eletrônica é indiscutivelmente mais rápida e econômica do que os métodos tradicionais. Isto é, a digitalização das notificações pode reduzir drasticamente os tempos de resposta, acelerando o processo legal e reduzindo os custos dos métodos mais antigos. É necessário, porém, que sejam respeitadas as formalidades jurídicas para garantir que a mora seja devidamente estabelecida e aceita pelo judiciário.

Por fim, é essencial que a comunidade jurídica se envolva de maneira proativa nas discussões e aprimoramento de novas práticas tecnológicas no uso de interpelações que visem à constituição da mora, garantindo que a legislação não só se adapte às transformações diárias, mas também resguarde e fomente os direitos fundamentais.

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Advogada do Núcleo de Telecomunicações do escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço & Lobo Advogados. Foto: Arquivo pessoal
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