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Opinião | Oito e oitenta, um descompasso penal insustentável

Para manter reconhecimento e legitimidade social, o sistema penal precisa ter consistência lógica e não se afastar do objetivo fundamental: justiça

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convidado
Por José Jácomo Gimenes

Em 12 de setembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal, interpretando a Constituição de 1988, por maioria, decidiu que as decisões do Tribunal do Júri, instituição centenária, que julga crimes dolosos contra a vida, definidas pelos jurados, devem ter execução imediata, independente do total de pena aplicada. A respeitável decisão do STF recebeu aprovações, mas também críticas fundamentadas, como é salutar nas repúblicas democráticas.

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O ministro Roberto Barroso, relator da tese vencedora, explicou que “O Direito à vida é expressão do valor intrínseco da pessoa humana, constituindo bem jurídico merecedor de proteção expressa na Constituição e na legislação penal. A Constituição prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida e prevê, ademais, a soberania do Tribunal do Júri, a significar que sua decisão não pode ser substituída pelo pronunciamento de qualquer outro tribunal.

O ministro Alexandre de Moraes, defendendo a tese vencedora, destacou que “O júri é a sociedade julgando aquela pessoa. A sociedade disse que aquela pessoa deve ser condenada. A presunção de inocência dele foi afastada pela sociedade. A sociedade, naquele momento, de forma soberana, representada pelo conselho de jurados, inverteu a presunção de inocência. Não é possível dizer que ele (o condenado) permanece inocente”.

Na base da questão constitucional resolvida pelo STF havia forte indignação e clamor popular contra a tradicional cena do acusado ser condenado em julgamento público, por representantes da sociedade, com ampla cobertura da mídia, sair do tribunal livre, para recorrer e esperar trânsito em julgado em até quatro instâncias, anos de demora e até possível prescrição. A nova posição jurisprudencial foi um arranjo forte no sistema processual e penal, mas pontual.

O STF tem variado bastante neste ponto de fundamental importância: início do cumprimento da pena firmada nos processos criminais. O nosso Direito tinha uma indiscutível história de cumprimento da pena após condenação da segunda instância, com possibilidade de tribunal superior suspender justificadamente a execução da pena. Essa era a tradição do nosso sistema de justiça penal.

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A Constituição de 1988 trouxe uma novidade neste ponto. Determinou que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória”. A partir desta regra constitucional foi lentamente construído o chamado princípio da inocência absoluta até o trânsito em julgado.

Em 2009, 21 anos depois da Constituição, a maioria simples do STF (6 a 5) foi convencida de que, a partir do texto constitucional acima, que define o momento da configuração jurídica da culpa, poderia ser extraída uma norma que proíbe o início do cumprimento de pena antes do trânsito em julgado da sentença, permitindo quatro instâncias de julgamentos (juízo local, tribunal regional, STJ e STF), dezenas de recursos processuais e muitos anos para prisão (se o crime não prescreveu pela demora).

Apenas sete anos depois, em 2016, em histórico julgamento, o STF, também por maioria simples, voltou à tradição antiga, desfazendo o princípio da inocência absoluta, permitindo início do cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância. Em 2019, apenas três anos depois, também por maioria simples, o STF decidiu que o cumprimento da pena deve começar após o esgotamento de todos os recursos possíveis nas quatro instâncias.

Agora, em 2024, em novo capítulo, em ponto específico, o STF decidiu pelo cumprimento imediato da pena para os crimes dolosos julgados pelo Tribunal do Júri, portanto a partir da primeira instância, afastando o princípio de inocência absoluta nesta espécie de crime, em razão da soberania do Tribunal do Júri.

Essa última decisão, independente do seu mérito, gerou no cenário penal um desconcerto que precisa ser arrumado. Um condenado por homicídio simples, com pena mínima de seis anos, começa cumprir a pena imediatamente após decisão do Júri, na primeira instância, mas um condenado por latrocínio, por exemplo, onde ocorre assassinato para roubar, com pena mínima de 20 anos, tem direito a quatro instâncias de julgamento, com inúmeros recursos processuais, anos de espera do trânsito em julgado para cumprimento da pena, com probabilidade de prescrição.

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Esse descompasso acontece em dezenas de crimes previstos na legislação penal (a maioria esmagadora dos crimes) não julgados pelo Tribunal do Júri, alguns com repercussão sobre a vida de milhares de pessoas pobres, como por exemplo os crimes do colarinho branco, com desvios de verbas públicas que afetam diretamente a execução de políticas públicas em áreas fundamentais, como saúde, educação e assistência social.

Para manter reconhecimento e legitimidade social, o sistema penal precisa ter consistência lógica e não se afastar do objetivo fundamental: justiça. A experiência nas grandes democracias é de cumprimento da pena a partir da segunda instância, no máximo com possibilidade de recurso para terceira instância, sem suspensão do cumprimento da pena. A sociedade organizada e, especialmente, a elite jurídica nacional têm obrigação de dialogar sobre essa desconformidade do nosso sistema penal e encaminhar aos poderes responsáveis reformas e mudanças que otimize o sistema penal brasileiro, visando eficiência e justiça.

Convidado deste artigo

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José Jácomo Gimenes
Juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringa-PR. Foto: @memoriadajusticafederaldop8706 via YouTube
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