No último dia 25 de setembro, aconteceu dentro do Supremo Tribunal Federal e como resultado de conciliação mediada no Gabinete do Ministro Gilmar Mendes, importante, inovador e salutar acordo sobre a demarcação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, no Mato Grosso do Sul e próximo da fronteira com o Paraguai. Era um processo que se arrastava nos foros brasileiros por quase vinte anos e cujo resultado efetivo foi o compromisso dos fazendeiros deixarem referida área mediante indenização que engloba benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé, bem como respectivo valor da terra nua.
Acerca desse último valor de indenização acordado sobre terra indígena (porque pertencente à União e nos termos do art. 20, inciso XI, da atual Constituição) é que residem críticas e mesmo estranhamento pelo desfecho dado ao caso, onde a própria União Federal e o Estado do Mato Grosso do Sul acabaram assumindo compromisso pelo desembolso de uma espécie de indenização aparentemente incompatível com o Texto Constitucional. Melhor esclarecendo, Entes Federados pagando por bem público de natureza especial que, por disposição constitucional, já pertenceria à esfera de propriedade da União.
Convém ainda lembrar que na Constituição de 1988 também se reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas, não gerando essa nulidade e extinção direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei e quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (art. 231, parágrafo 6º). No caso específico dos não índios que se apropriaram de parte da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, correm notícias de que serão também indenizados pelo valor da terra nua, como se proprietários dela fossem. Situação parecida com aquela reivindicada – mas sem sucesso - pelos desintrusados da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a partir do ano de 2009 e no Estado de Roraima.
Em que pese alguns fazendeiros ocupantes daquele território tradicional terem apresentado títulos de propriedade conferidos pelo Poder Público desde o ano de 1903, expedidos na vigência da Constituição Republicana de 1891 e, bem por isso, válidos nos termos interpretativos da época, não obtiveram êxito nos requerimentos indenizatórios quanto ao pagamento do valor da terra justamente porque no art. 231 da atual Constituição se declararam nulos e extintos, não produzindo qualquer efeito jurídico, os atos que tenham por objeto a ocupação, domínio e posse das terras indígenas, não gerando com essa nulidade direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (art. 231, parágrafos 2º e 6º).
Acompanhei muito de perto os desdobramentos da demarcação e posterior julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do processo envolvendo a Terra Indígena Raposa Serra Sol, não apenas porque resido e trabalho no Estado de Roraima, mas sobretudo pelo motivo de que foi objeto da minha tese de doutoramento em direito e defendida junto a Pontíficia Universidade Católica do Paraná no primeiro semestre de 2009. Entendi e defendi justa a decisão proferida pela Suprema Corte para aquele caso específico, reconhecendo-se mesma área como de ocupação tradicional pelos povos Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang e Patamona.
Entretanto, sempre me incomodou o fato de que não índios assentados legalmente na região por mais de um século (porque detentores dos títulos de propriedade expedidos conforme direito da época), tiveram aqueles registros conferidos pelo Estado Brasileiro declarados nulos e extintos, não produzindo qualquer efeito jurídico e sendo totalmente desconsiderados para fins de indenização. Significa dizer que o mesmo Estado que incentivou suas idas para a região, lhes conferindo direito de propriedade e no mais das vezes financiando a juros subsidiados instalações das suas fazendas, resolve agora esquecer tudo isso, como se nada tivesse acontecido e voltar todo seu aparelho repressivo para expulsá-los da terra ocupada por incentivos de políticas públicas implementadas na região.
Essa “esquizofrenia estatal”, legitimada por teoria que autoriza uma nova constituição não ficar submetida aos ditames daquela que lhe é anterior, acaba por destruir tanto o primado da certeza do direito quanto segurança jurídica no âmbito do Estado Democrático de Direito. Para o constitucionalismo moderno, pode o Estado prometer, incentivar e constituir direitos para, mais tarde e a depender dos novos ventos constituintes, dizer que tudo não passou de um engano histórico?
Deixo muito claro e por aqui assentado que nesses dois casos citados se fez justiça aos povos indígenas que, por décadas de luta e opressão, tiveram a tristeza de perder lideranças e membros comunitários por ocasião da defesa de seus territórios. Essa irracional violência no campo deve ser combatida e eliminada, ainda mais quando boa parte dela restou causada pela ação propositiva do Estado Brasileiro ou mesmo por sua omissão, quer porque distribuiu indiscriminadamente no passado títulos de propriedade individual sobre terras indígenas, quer porque retarda injustificadamente demarcação dos aludidos territórios que deveriam ter sido concluídos até o dia 05 de outubro de 1993, conforme promessa constitucional registrada no art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Passaram-se mais de 36 (trinta e seis) anos e no Brasil pouco se fez a fim de resolver ou conter refletidos conflitos dessa natureza. Longe ainda de se estabelecer parâmetros formais mais claros e definidores dessas indenizações, entendo como merecedor de aplausos os recentes acordos promovidos no caso da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu e sob a ótica dos não indígenas classificados como de boa-fé, uma vez que após julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol pessoas daquela mesma qualidade ficaram desassistidas, relegadas à própria sorte e sem qualquer satisfação por parte das Autoridades que lhes conferiram títulos de propriedade.
Assim como aconteceu com indígenas da Raposa Serra do Sol, conheci pessoas “brancas” que nasceram na mesma área e por lá se criaram, casaram e constituíram famílias, desenvolvendo suas vidas em modo similar de pertencimento ao território como os povos originários da região. Parente de um servidor do Ministério Público do Estado de Roraima restou acometido de forte depressão quando foi desintrusado da área, falecendo logo em seguida com sintomas de profunda tristeza e decepção com os Agentes do Estado Brasileiro. Passados mais de quinze anos, outros aguardam até hoje indenização das benfeitorias levadas à construção por boa fé, nos moldes previstos em Texto Constitucional e que não aconteceram de maneira justa.
Muitos desintrusados ainda pleiteiam em juízo cobrar valor corresponde da propriedade de quem lhe conferiu esse direito, ou seja, do Ente Federado expedidor do título que se entendia como válido na época e que pautou vidas de pessoas não índias por décadas dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Houve até quem sustentasse com robustos argumentos, por meio de pesquisa acadêmica, que ao menos o Estado Brasileiro devesse indenizar por danos morais os não índios titularizados e depois retirados a força daquele território tradicional, somados logicamente aos prejuízos tidos com a construção das benfeitorias de boa-fé.
Mas tudo a depender do caso concreto, à míngua de generalizações que venham a prestigiar invasores conscientes de terra indígena, muito menos no sentido de premiar grileiros de má fé e sem risco de se prejudicar o respectivo processo de demarcação. Em vista dessas ligeiras considerações é que vejo com bons olhos essa alternativa de acordo entabulado no último dia 25 de setembro e com o escopo de se pacificar a demarcação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, no âmbito do Estado do Mato Grosso do Sul.
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