É de Norberto Bobbio a descrição de estado democrático de direito como o processo de desmonopolização do poder ideológico de um lado e do poder econômico do outro. Nesse sentido as políticas públicas de estado devem ser pautadas. Mas no Brasil não são. Por isso a dificuldade para estabelecer uma política de segurança. Nos últimos anos foram afirmações ideológicas, como a que seria bom cada cidadão ter uma arma para “se defender”. Entretanto, o aumento de venda de armas e o afrouxamento na apreensão não refletiram melhoria na segurança. Ao contrário, registrou-se aumento substancial, por exemplo, nos casos de feminicídio. Só em São Paulo, em 2022, mais de 43%, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em 2007 o Pronasci - Programa Nacional de Segurança com Cidadania sugeriu alguma diretriz, mas se resumiu, na prática, a financiar investimentos em gestão da segurança dos estados (construção de presídios, compra de armas, viaturas, equipamentos). Mas no mesmo momento, promulgou-se a Lei Antidrogas, que prende muito e mal e serve para arregimentação de “mão de obra” das facções criminosas. Milhares dos condenados por essa lei não deveriam estar presos em regime fechado; prisão em massa é a forma mais cara que já inventaram para piorar alguém; a prisão é um mal necessário para criminosos violentos e reincidentes, que cometem crimes graves, e para lideranças do crime organizado.
Há pouco tempo um Ministro da Justiça anunciou com pompa um pacote anticrime. O projeto mostrengo, que sequer foi acompanhado de justificativa, aprofundava o modelo equivocado sem estabelecer qualquer política de segurança. O que sobrou de bom, como o Juiz de Garantias, acabou suspenso sine die pelo STF. Curiosamente, o mesmo Ministro não conteve o estímulo de venda de armas no país. Em quatro anos, a autorização de posse de arma passou de 117 mil para 783 mil.
Resta, então, aos estados o pouco que se tenta e onde se encontram alguns resultados. São Paulo, por exemplo, lá em 2001, instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) aos líderes de facções criminosas, impondo limitações e isolamento. Após dois anos de embates jurídicos sobre a legalidade, alteração da Lei de Execução Penal disciplinou a medida. E a partir de 2003, há 20 anos, amparado pelo estatuto do desarmamento, intensificou a apreensão de armas ilegais. Políticas que geram resultados. Mas não foi só.
Como o crime não tem fronteira nem divisas, em 2008 o Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Beltrame, esteve em São Paulo. Na pauta: corregedorias das polícias; combate ao crime organizado - identificar, prender, isolar os líderes e asfixiar financeiramente as organizações criminosas; e pontos importantes para todo o Brasil - fronteiras, tráfico de drogas, contrabando e venda de armas. No Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, o Secretário conheceu o procedimento de apuração dos homicídios aplicado desde o final da década de 1990 (hoje a taxa de homicídios em São Paulo é de 6,7 por 100 mil habitantes, a menor do Brasil, que tem média de 23). Viu a compatibilização de áreas territoriais com a Polícia Militar e Civil e as Bases Comunitárias de Segurança.
Na ocasião, ficou claro que, após a instalação das bases, políticas públicas eram destinadas às localidades, com ações de cidadania (regularização de documentos), revitalização e intervenção urbana, Educação, Saúde, Cultura, Esporte e Assistência Social).
O estado deve estar perto do cidadão. O pressuposto é que violência não se resolve somente com repressão policial; a inclusão social e o sentimento de pertencimento da população são instrumentos de segurança pública.
Voltando ao Rio de Janeiro, Beltrame criou o DHPP inspirado no departamento paulista e deu início às primeiras bases comunitárias, lá chamadas UPP. Apesar do bom esforço inicial de Beltrame, a “agenda” política fluminense foi outra. O Rio de Janeiro, que poderia ter levado o estado para mais perto das comunidades, optou por direcionar recursos para gastos de duvidoso retorno social: Jogos Panamericanos, Copa do Mundo e Olimpíadas. Só neste último estimam-se R$ 40 bilhões à época. Eis o poder econômico.
Depois disso, sem controle, em 2017, veio a equivocada GLO para tentar “baixar a febre” no Estado. Nada de bom sobrou da ação. Passados alguns anos, um novo governador, que defendia “atirar na cabecinha”, extinguiu a secretaria de segurança pública e criou secretarias de polícias isoladas. Jogou fora qualquer continuidade na área. Ideologia. Um erro. Deu no que deu.
Em 2023, situação de milícia, poder econômico paralelo mascarado de ideologia. Agora, uma boa iniciativa: o governo federal lançou o Programa Nacional de Enfretamento às Organizações Criminosas (ENFOC), com cinco eixos de atuação e investimento de R$ 900 milhões.
Organizar a agenda política de segurança é medida que se impõe, há tempos!
*Ivana David, desembargadora no TJ/SP
*Willian Sampaio, advogado, foi subsecretário de projetos estratégicos e secretário de Estado adjunto da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo 2007-2010, gestão José Serra
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