Por cerca de três anos exerci minhas funções na Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital de São Paulo. E por mais cinco anos na Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos, atuando precipuamente nos recursos atinentes às ações de responsabilização civil por ato de improbidade administrativa.
Como Promotor de Justiça, instaurei diversas investigações muito complexas e delas derivaram ações pela prática de ato de improbidade administrativa contra políticos, empresários e diversos funcionários públicos. Nenhuma dessas ações chegou ao final, isto é, transitou em julgado.
Foram diversas condenações com indisponibilidade de bens resultantes de enriquecimento ilícito e corrupção, além de determinação de perda de cargo, suspensão de direitos políticos e aplicação de pesadas multas.
Tinha muito receio de que, com a decisão da Excelsa Corte, todas as regras constantes das alterações trazidas à Lei de Improbidade Administrativa pudessem retroagir e, com isso, atingir as investigações e processos em andamento, além dos já transitados em julgado em que existisse condenação.
Isso porque a prescrição intercorrente, que é contada da propositura da ação até a publicação da sentença condenatória ou desta até a publicação do acórdão do Tribunal de segundo grau que confirma a condenação, e assim por diante até a publicação do acórdão que confirma a condenação pelo Supremo Tribunal Federal, fulminaria todas as ações que promovi, haja vista que o prazo desta modalidade de prescrição é por demais curto, quatro anos, quase impossível de ser cumprido de um marco interruptivo até outro.
Anoto, ainda, que a sentença de improcedência não interrompe a prescrição, que será interrompida pelo acordão que reformá-la e julgar procedente o pedido de condenação por ato de improbidade administrativa. Ou seja, nestes casos, passados quatro anos da data da propositura da ação até a publicação do acórdão condenatório, a prescrição advirá. Portanto, se quatro anos entre um marco ininterrupto e outro já é quase impossível para o julgamento da ação, se a sentença for de improcedência do pedido, daí sim será impossível não ocorrer a prescrição da data da propositura da ação até a publicação do acórdão que reforme a decisão de primeiro grau.
As novas normas aprovadas ao toque de caixa pelo Congresso Nacional, durante a pandemia, e sancionadas sem vetos pelo Presidente da República, sepultaram a legislação mais moderna do mundo no combate ao desvio e malversação do dinheiro público e aos atos de corrupção e enriquecimento ilícito.
Será quase impossível condenar agente público por ato de improbidade administrativa e, quando isso ocorrer, o que raramente acontecerá, impedir a ocorrência da prescrição intercorrente será quase um milagre na imensa maioria dos casos, dada à enormidade de recursos existentes e a natural morosidade da Justiça por conta da infinidade de processos a serem instruídos e julgados, além de possibilidades às pencas de protelação dos atos processuais, que os advogados saberão muito bem empregar.
Outra inovação catastrófica para a legislação foi o início do prazo prescricional, que corre da data dos fatos ou quando cessar a permanência, naquelas infrações que se protraem no tempo. Imaginem só um ato de improbidade administrativa praticado por governador e prefeito logo no início do mandato. No caso de reeleição, os fatos só serão conhecidos por ocasião da nova gestão, notadamente quando o mandatário for de partido diverso. Aquelas infrações praticadas ao início do mandato estarão praticamente prescritas e sequer haverá tempo hábil para o término da investigação, visto que decorridos seis ou sete anos da ocorrência dos fatos, ou até mais.
Pelas regras anteriores, o prazo prescricional era de cinco anos a contar do término do exercício do mandato eletivo, cargo em confiança ou de comissão, ou de acordo com a legislação específica para faltas disciplinares puníveis com a pena de demissão a bem do serviço público, para o ocupante de cargo efetivo ou emprego público, sendo que, normalmente, nestes últimos casos, a legislação pertinente tinha como prazo prescricional o mesmo do previsto para o crime equivalente ao ato ímprobo praticado, isto é, bem elevado. E sequer havia a nova prescrição intercorrente, que é típica do nosso direito penal.
Pior ainda é o prazo para o término das investigações. Um ano, prorrogável uma única vez, e mais um mês para a propositura da ação. Com isso, o prazo decadencial para a propositura da ação será de apenas dois anos e um mês a contar da instauração do inquérito civil. Posso dizer com a experiência de quem já instaurou e procedeu a centenas de investigações, que será quase impossível encerrar as de média e grande complexidade em prazo tão exíguo. Se houver necessidade de cooperação jurídica internacional, este tempo é normalmente o necessário apenas para que recebamos as informações dos órgãos internacionais, a depender do país colaborador.
Os maus congressistas e advogados que atuam nesta área conseguiram o que queriam. Livrarão boa parte dos corruptos em geral das garras da Justiça, posto que todas as teses defensivas que eram sistematicamente repelidas pelos Tribunais, agora são texto de lei e de aplicação obrigatória.
Só a título de exemplos e de forma bem sucinta seguem algumas e mais importantes alterações que estraçalharam a Lei de Improbidade Administrativa, que dificilmente será aplicada eficazmente como ocorria na vigência das regras revogadas:
1) não há mais improbidade culposa quando causar dano ao erário (era culpa grave, quase dolo eventual).
2) O dolo agora é específico, isto é, exige-se prova da intenção de enriquecer (beneficiar) a si ou a outrem (art. 9º e 11), ou para causar dano (art. 10).
3) Fraude à licitação só se houver prova do dano, que antes era presumido.
4) Enriquecimento sem causa. Bastava comprovar a incompatibilidade dos bens e dos vencimentos. Era ônus do réu demonstrar a compatibilidade e a origem lícita dos bens. Agora, tem de ser demonstrado que esses bens são produto de ato de improbidade de enriquecimento ilícito (art. 9º caput). Ou seja, tornou-se inaplicável o dispositivo. Se é produto de improbidade já haverá a condenação por outro inciso.
5) Violação a princípios (art. 11). O rol é taxativo e deve ser demonstrada a intenção de benefício indevido para si, terceiro ou entidade (dolo específico). Antes, bastava que houvesse qualquer violação aos princípios da administração pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) e o dolo era genérico, sem necessidade de especial intenção de agir (dolo específico). Assim, v.g, qualquer crime cometido por agente público no exercício do cargo era ato de improbidade por violação ao princípio da legalidade. O dispositivo era norma de reserva. Não pode ser mais. A imputação deve ser certa e o juiz não pode condenar por outro artigo ou inciso.
6) Sensível redução das sanções no art. 11, improbidade que era a mais comum.
7) Proibição de contratação era com qualquer ente da administração. Agora, só do ente lesado. Só excepcionalmente pode ser estendido.
8) No caso de condenação, o agente público perderá só a função que ocupava. Excepcionalmente e de forma justificada pode alcançar outra.
9) Prescrição: oito anos do fato ou quando cessar a permanência. A instauração do IC suspende a prescrição por 180 dias.
10) Prescrição intercorrente em quatro anos (tempo muito curto). Interrupção parecida com o direito penal (ajuizamento da ação e publicação da sentença condenatória. Acórdão condenatório ou confirmatório em todas as instâncias).
11) Prazo de 365 dias prorrogável uma vez para encerrar o IC. Findo, 30 dias para promover ação (quase impossível em muitos casos terminar).
12) Perigo concreto para a indisponibilidade bens, que não atinge a multa civil e o enriquecimento ilícito. Só o dano. Pelas regras anteriores, o perigo na demora era presumido, bastando a prova da fumaça do bom direito. E a indisponibilidade abarcava o valor necessário para o pagamento da multa civil e do atinente ao enriquecimento ilícito. A regra será a dilapidação ou ocultação do seu patrimônio, notadamente quando o condenado perceber que não alterará a decisão judicial ao findar dos recursos, que pode demorar décadas.
Até acredito que a maioria dos deputados e senadores que aprovaram as novas regras não tinha ideia da catástrofe que ocorreria no que concerne ao combate aos atos ímprobos, mas Inês é morta e a lei está em vigor.
Pelo menos, a Excelsa Corte, de forma razoável e sensata, limitou sobremaneira a retroatividade das novas regras. Não haverá a retroação para as condenações transitadas em julgado em nenhuma hipótese. A prescrição intercorrente começará a fluir a partir da publicação das novas regras (26.10.2021), data de sua entrada em vigor. Será atingida pelas novas regras a condenação por ato de improbidade culposo (que tenha causado dano ao erário), que ensejará a absolvição, desde que a condenação não seja definitiva (transitada em julgado). Nesta hipótese, o Magistrado deverá analisar se não atuou com dolo o agente.
Prevaleceu a tese do Relator, Ministro Alexandre de Moraes, de que as normas punitivas previstas na Lei de Improbidade Administrativa estão inseridas no âmbito do direito administrativo sancionador, isto é, possuem natureza civil, e, por isso, não retroagem se forem mais benéficas ao réu, regra constitucional esta atinente exclusivamente ao direito penal, tese que sempre defendi.
Se não bastasse o enterro da Lava-jato, também se matou e sepultou a Lei de Improbidade Administrativa, que era o terror de todo político, empresário e agente público desonesto.
Enfim, só notícias ruins, uma atrás da outra, e pode ser que ainda piore muito mais.
E, novamente, como já virou costume nestes dias sombrios para a nação, viva o país da corrupção e da impunidade em que ser desonesto, criminoso e muitos outros adjetivos análogos que vocês podem imaginar, compensa.
Abaixo, seguem as teses firmadas pelo STF quanto à retroatividade das novas regras:
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se -- nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA -- a presença do elemento subjetivo -- DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 -- revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa --, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude de sua revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.
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