Influentes na realidade de diversos países, cortes constitucionais ou cortes com jurisdição constitucional eram raridade antes da segunda guerra mundial . Hans Kelsen fez parte da primeira composição do Tribunal Constitucional da República Austríaca que ajudou a idealizar. Em 1928, quando julgava a indissolubilidade do casamento civil, chegou em casa e viu suas duas filhas pequenas abaladas, pois na entrada de seu “apartamento havia sido colocada uma espécie de cartaz no qual estavam escritas coisas horríveis”, incluindo “os mais obscenos impropérios de ordem sexual; mantenedor de harém era um dos mais brandos”.
Pressionado, logo decidiu não mais integrar a Corte para se dedicar integralmente à docência universitária. Em um de seus famosos êxodos, foi lecionar na Universidade de Colônia. Não demorou muito por lá, porém. Num determinando dia, enquanto tomava café da manhã, sua esposa aponta para o verso da página que lia no Diário de Colônia: era a notícia de sua demissão como professor. “Estava mais do que na hora de deixar a Alemanha” , concluiu então o jurista. Não poderia ser diferente, o mesmo ódio que cercara o vandalismo sobre sua residência em Viena se entronava no poder com a ascensão do regime nazista que simplesmente não poderia tolerar a ideia de um Tribunal Constitucional dotado de competência para retirar eficácia de leis por motivo de inconstitucionalidade. Nem pensar, afinal, como naquele conjunto de feixes reunidos em clave, deveria prevalecer sempre a autoridade da maioria, indobrável, simplesmente porque popular.
Desde então, a história conta como que a ideia de tripartição de poderes, mudos uns aos outros, não foi o bastante para assegurar o funcionamento dos freios institucionais necessários à manutenção do equilíbrio entre poderes que tanto significa o estado democrático de direito. Freios internos falham, governos se sabotam, numa autofagia impetuosa e seus atos são posteriormente legitimados pela edição de normas de ocasião, flagrantemente inconstitucionais. Desmantelado o equilíbrio entre os poderes, setores da sociedade, política ou civil, ao invés de se insurgir numa revolução para restaurar o status quo, como previa Montesquieu, podem simplesmente aplaudir, encantados por promessas ocas ou movidos por discursos inflamatórios.
Mesmo com tudo que passamos, ainda hoje, vemos aumentar, em volume e intensidade, questionamentos sobre a legitimidade e até mesmo o propósito da Corte Constitucional. Dia sim e outro também, o coro aumentava: das troças às cavilações, das críticas cortantes até os sentimentos de hostilidade que, por fim, se reuniram numa carga de fúria sem precedentes, com a invasão da sede do Supremo Tribunal Federal e a depredação de tudo que se encontrou pelo caminho; tudo lançado à rua e flagelado pela turba ensandecida. Como os hunos de Borges, “arderam palimpsestos e códices” e “rasgaram os livros incompreensíveis e os injuriaram e queimaram, talvez temerosos de que as letras encobrissem blasfêmias contra seu deus”.
O evento é inédito; sua motivação não. A invasão da Praça dos Três Poderes foi umbilicalmente nutrida por esses sentimentos antiestablishment e antissistema que estão pondo à prova não só a democracia brasileira, como outras ainda mais antigas, como a norte-americana. De comum, encontramos governos reacionários que conseguem reunir um apoio popular perene, utilizado não apenas esporadicamente, no momento de eleição, mas como um instrumento recorrente, disponível para forçar as mais diversas instituições a se curvarem aos rompantes dessa ou daquela pauta. Por aqui, o STF teve de (sobre)viver quatro anos com ex-mandatário do país ameaçando acusando seus membros, ou então aderindo ao corrupio de gente que pedia seu fechamento, ou a prisão de seus membros, sob o refrão “supremo é o povo”.
Essa cruzada dita anti-institucional é difícil de ser contraposta no plano da razão, pois se basta por si mesma, se autorreferencia infinitas vezes no círculo de suas idealidades e referências. Faz lembrar do falso louco que prefere não ouvir, para manter a blindagem da ignorância; o mesmo que, na falta da verdade, compensa em repetição, no conforto da panfletagem virtual que diz apenas o que lhe convém (ou melhor, o que não lhe convém, para justificar seu sentimento de repúdio). Combater essa Hidra de Lerna é tarefa ingrata, talvez impossível, mesmo para as companhias de tecnologia que parecem controlar até as estações do ano.
Agora, porém, esse discurso sai da neocaverna das redes sociais diretamente para o púlpito do Supremo Tribunal Federal e, pior, é levado justamente por aqueles que, por definição constitucional, são vetores essenciais da Justiça: os advogados. É de se espantar o caráter inflamatório das defesas que assumiram a tribuna do plenário, na última semana, com uma linguagem bélica e sem sentido, feita para multidões e, por isso mesmo, distante das circunstâncias do caso em julgamento. Mais difícil ainda é imaginar se os acusados aceitaram, conscientemente, sacrificar preciosos minutos reservados à sua defesa - instantes de notoriedade - para propagação das mesmas teorias conspiratórias do repertório de seus celulares. Fora as confusões de ordem literária, não parece se tratar de uma falta de senso ou de atilamento intelectual daqueles que se dirigiam ao plenário. Não estamos a tratar de uma pedrada de doido, ou de um coice de mula, mas sim de uma acusação sistemática, propagada ao longo do tempo e pouco combatida, apenas repetida pelo advogado que acusa os ministros de serem “os mais odiados do Brasil”. Acusação com que o STF tem convivido faz tempo.
Surpreende que seja preciso dizer isso, mas parece necessário diante de tudo aquilo que assistimos: os ministros do Supremo não desejam ser os mais amados do Brasil. Não são políticos disputando uma eleição majoritária, nem artistas em busca das palmas da grande massa. Pelo contrário, as decisões firmes tomadas em pautas contra-majoritárias são sintomas (ou melhor, provas) de que nossa Suprema Corte, apesar das provações, desempenha bem sua função de guarda da Constituição. Não há espaço, nesse múnus público tão relevante para servilismos a quem quer que seja, indivíduo ou multidão; há compromisso, tão somente, com o texto constitucional e sua melhor interpretação. A circunstância faz lembrar da lição do Min. Celso de Mello, no julgamento da ADPF 395/DF: se a “Suprema Corte constitui, por excelência, um espaço de proteção e defesa das liberdades fundamentais, não é menos exato que os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional”.
Tem-se, como consenso, que o descompasso, inexorável, entre facticidade e normatividade decorre da dinamicidade dos fatos que supera, e muito, qualquer criatividade ou empenho legiferante, gerando, com isso, as mais variadas disputas entre os âmbitos públicos e privados, bem como entre sociedade civil e sociedade política. Essas disputas, por evidente, chegam às barras dos tribunais que devem analisar o direito dos suplicantes, ainda que contrários à maioria. A bem da verdade, justamente por serem minoritários, determinados grupos tendem a não obter lugar nos debates oficiais. Sem representatividade expressiva, suas reivindicações acabam desprezadas no âmbito institucional. Com isso, se forma um vácuo regulatório, muitas vezes deliberado, que macula direitos fundamentais e que deve, por isso, ser enfrentado pelo Poder Judiciário, em última instância, pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Outras vezes, há a edição de normas em descompasso constitucional, de interesse da maioria, cuja representação parlamentar reunida para sua promulgação em nada convalida a situação de inconstitucionalidade.
Mas não é só. Com praticamente todos os assuntos de nossa República sendo judicializados, inclusive pelos partidos políticos que compõem o Poder Legislativo (lembrando que o Judiciário opera apenas quando provocado) é inevitável o tal do efeito backlash: a reação contrária gerada por decisões judiciais constitucionais, muito comum em casos difíceis, como discussões sobre igualdade de gênero ou questões que envolvam pautas religiosas, como aquela que cuidou Kelsen, antes da sua saída da judicatura. Condena-se o afazer hermenêutico na figura dos próprios julgadores, não suas razões. Posição difícil que exige da Corte estar perpetuamente em guarda, como meio de sobrevivência. Daí porque vemos em nossa contemporaneidade a formação de um constitucionalismo resiliente, decorrência direta dessa situação generalizada de inconformismo constitucional.
De nossa parte, como advogados, cabe não ceder à tentação de assistir como espectadores essa luta, mesmo porque o esforço é travado em nosso favor, pela sobrevivência de um Tribunal Constitucional independente e respeitado, imune a tanta agressão, cuja legitimidade não repousa na conveniência de suas decisões à vontade das maiorias. É tempo de assomar nos limites da influência de cada um: não apenas encarar os convertidos (contra esses, ninguém pode), mas sim a incompreensão dos demais; esclarecer, a conta gotas que seja, o papel de nossa Suprema Corte, reservado pela Constituição, e a diferença de sua lógica operativa para aquela das políticas majoritárias. Enfim, combater com as mesmas veemências do advogado que acusa (com o perdão do oximoro) a desinformação sem a qual uma acusação dessas, sem sentido, não se cria.
Referências:
1. GRIMM, Dieter. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 1, p. 55-71, set.-dez., 2019. P. 55.
2. KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. Pág. 95
3. Como bem nomeia o professor Lênio Streck.
*Leandro Dias Porto é advogado, integrante do Tribunal de Ética da OAB/DF, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, professor e sócio do escritório Sergio Bermudes
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