Quando era criança e viajava com meus pais rumo ao litoral norte, parávamos em Paraibuna, cujo cemitério sempre nos deixava pensativos. É que havia um letreiro no portão, dizendo: “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”. Era uma forma de fazer a criança pensar na morte. Algo que parecia distante, mas que aos poucos ia surgindo em nossa existência, quando ela chegava perto de nós. Família, amigos, conhecidos. Todos iam morrendo.
Volto ao tema ao reler Giovanni Papini, cuja obra visito com outros olhos. Lera alguns de seus livros quando iniciava meu curso de Bacharelado em Direito na Universidade Católica de Campinas, entre 1966 e 1970. Ela ainda não era “Pontifícia”, o que aconteceu mercê da influência de Dom Agnelo Rossi.
Encontro hoje, um Papini ainda mais instigante. No texto ‘A vida dos mortos’, ele observa: “Não se deve dizer que os mortos, com o pretexto de haverem se convertido em cadáveres, deixem de tomar parte na vida dos vivos. Não digo com seus pensamentos, recordações e influências, senão propriamente em carne e osso”. Narra o episódio da batalha de Badr, que aconteceu no ano 624. Mahoma, vitorioso, pronunciou um enorme sermão a seus inimigos mortos, dispersos pelo campo de batalha, para atirar-lhes na cara o fato de não haverem escutado suas exortações. E os cadáveres, com seu silêncio, assentiram às verdades gritadas pelo profeta”.
No ano 897, o Papa Formoso foi tirado do sepulcro, onde descansava já havia nove meses, submetido a juízo e legalmente condenado. Em Portugal, no início do século XIX, os mortos eram expostos nas igrejas, descobertos, com uma bandeja sobre o peito, e só enterrados quando as esmolas recolhidas fossem suficientes para cobrir os gastos do funeral.
Foi também a terra mãe lusa que registrou o episódio em que a Rainha Inês, tendo deixado o mundo dos vivos, foi exposta ao beija-mão de todos os seus súditos. Na cidade de Bulciano, conta-se que um idoso morreu antes de chegar o notário para colher suas disposições de última vontade, para lavrar um testamento. Mas uma hábil criada, escondida atrás da cabeceira de seu leito de morte, foi respondendo “sim” ou “não” às indagações do tabelião. De maneira que o testamento se colheu e, naturalmente, em favor de um sobrinho que imaginara o macabro expediente. Idêntica astúcia envolve Gianni Schicchi, que ocupou o lugar do morto Buoso Donati, e a quem Dante fez célebre no seu “Inferno”, XXX, 32.
Mas isso não ocorria só no passado remoto. Há pouco se ouviu, aqui no Brasil, que um falecido fora levado à agência bancária, para retirar o saldo de sua conta corrente. Fato amplamente noticiado pela mídia espontânea, ávida por bizarrices.
No mês de setembro de 1930, em Rosenthal, na Áustria, um homem chamado Kokoschka praticou suicídio. Um inspetor de polícia acudiu para constatar a morte. Enquanto examinava o cadáver, o revólver que o suicida segurava em suas mãos disparou e matou o investigador.
Isso leva Papini a afirmar que os mortos, pois, podem seguir representando o papel de ouvintes, de acusados, de mendigos, de testadores, de homicidas. E, talvez, possam exercer muitos outros papeis.
Sem falar que, antigamente, pessoas acometidas de um ataque apoplético eram tidas como mortas e, não raro, chegavam a ser enterradas vivas. Algo que só se descobria muitos anos depois, quando era necessária a exumação para acomodar outro recém-falecido no túmulo familiar.
Ainda hoje se constata a existência de cadáveres que são conservados por vivos que os amavam, quando também animados pelo sopro vital e que relutam em entregar os restos mortais ao sepulcro.
Estive recentemente em Assis, onde se conserva – intacto – o corpo do menino Carlo Acutis, ora a caminho do altar, pois constatado o segundo milagre por sua intercessão. É emocionante ver esse garoto como se estivesse a dormir, encerrado numa urna de vidro aberta à pública visitação.
Para os que creem na sobrevivência da alma, a visitação a Carlo Acutis, o protetor da internet e da juventude antenada no mundo web, deverá servir para reforçar a fé. Há mortos, portanto, que podem fazer mais viva e animada a nossa esperança de que esta peregrinação seja passagem, e que assim como estivemos presos ao útero materno, em completa escuridão, sairemos do útero da Terra para a claridade solar da verdadeira existência. Por sinal, Platão já entrevira isso na metáfora da caverna e ouvi estes dias que nosso século é a prova mais concreta de que estamos longe da luz do sol da verdade.
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