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Opinião|Os possíveis impactos e as muitas dúvidas sobre a nova lei anticorrupção dos EUA

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convidado
Por Guilherme France

Uma nova lei aprovada pelo Congresso norte-americano e sancionada pelo Presidente Biden, nos últimos dias de 2023, tem o potencial de transformar a atuação das autoridades de law enforcement mais ativas no combate à corrupção transnacional, o Departamento de Justiça dos EUA. Ao criminalizar a corrupção passiva de agentes públicos estrangeiros, abriu-se a porta para que sejam investigadas e condenadas autoridades que nunca sequer pisaram em território norte-americano.

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A nova legislação norte-americana se chama Foreign Extortion Prevention Act (FEPA). Pretende responsabilizar criminalmente os agentes públicos estrangeiros que exigem ou recebem propina enquanto estiverem em território dos EUA ou de empresas que estão sujeitas à jurisdição norte-americana.

Admitidamente, o FEPA pretende ser um complemento à legislação que representou um marco histórico nos esforços de combate à corrupção transnacional: o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA). O FCPA antecedeu e, em grande medida, inspirou a Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros, que se foca no lado da oferta da corrupção, ou seja, na corrupção ativa. Por isso, determina que Estados criminalizem atos de oferta, promessa ou entrega de vantagens indevidas a funcionários públicos estrangeiros. Esta convenção não trata, no entanto, da corrupção passiva, ou do lado da demanda da corrupção.

O FEPA prevê como crime que qualquer agente público estrangeiro, direta ou indiretamente, demande, busque, receba ou aceite de empresas que já estão sujeitas ao FCPA qualquer coisa de valor pessoalmente ou para outra pessoa ou entidade não-governamental. Agentes públicos estrangeiros condenados poderão receber uma pena de prisão de até 15 anos e multa de até 250 mil dólares, ou o triplo do valor do suborno recebido (o que for maior).

Trata-se, sem dúvida, de mais um passo na expansão jurisdicional extraterritorial dos Estados Unidos, já amplamente criticada no Brasil e em outros países. O alcance extraterritorial da jurisdição da Justiça Federal norte-americana é explicitado no texto da nova lei. Não carece, no entanto, de base legal no Direito Internacional. A criminalização da corrupção passiva por funcionários públicos estrangeiros é prevista na Convenção da ONU contra a Corrupção (UNCAC), em seu art. 16, b. A UNCAC já foi ratificada por 190 países, inclusive pelo Brasil.

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Nesse ponto, é importante, no entanto, que se note a diferença de tratamento que a UNCAC dá à corrupção ativa (“Cada Estado adotará as medidas legislativas...”) e à corrupção passiva (“Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas...”) de funcionários públicos estrangeiros. A primeira determinação é obrigatória, enquanto a segunda é considerada, apesar de constar explicitamente no texto de um tratado internacional (‘hard law’), como não-obrigatória para os Estados-partes. De acordo com nota interpretativa, essa redução do nível de obrigatoriedade se deve não a um menor nível de reprovabilidade da conduta, mas ao fato de corrupção passiva já ser uma conduta criminalizada pelo art. 15 da UNCAC.

Por um lado, o governo norte-americano já vinha buscando responsabilizar agentes públicos estrangeiros acusados de envolvimento com grandes esquemas de corrupção por meio de sanções unilaterais, que são amplamente criticadas. As penalidades impostas por estas sanções são essencialmente administrativas, ou seja, menos gravosas do que as previstas no FEPA. Não estavam, contudo, sujeitas ao mesmo nível de contraditório e devido processo legal que se imporá, espera-se, às investigações e aos processos criminais por corrupção passiva.

De outro lado, o esforço concertado de responsabilizar agentes públicos estrangeiros por atos de corrupção, consumado pelo FEPA, gera questionamentos diversos com relação ao seu alinhamento com o Direito Internacional e a possíveis impactos sobre as relações internacionais. Tratados internacionais diversos, assim como o costume internacional reconhecem a imunidade diplomática de determinados agentes públicos, algo que deve ser preservado.

Mesmo as normas internacionais de combate à corrupção reconhecem, explicitamente, “os princípios da igualdade soberana e integridade territorial dos Estados, assim como de não intervenção nos assuntos internos de outros Estados” (art. 4.1, UNCAC). A investigação e a condenação de uma alta autoridade estrangeira que nunca esteve nos EUA e, possivelmente, sequer apresentou defesa – é difícil imaginar um chefe de Estado estrangeiro se submetendo voluntariamente à jurisdição norte-americana -, certamente gerará repercussões políticas graves.

Do ponto de vista prospectivo, se o FEPA tiver impacto semelhante ao seu antecessor – a disseminação de legislações equivalentes em outros países – há de se perguntam também qual seria a reação dos Estados Unidos a tentativas de se responsabilizar autoridades norte-americanas por atos de corrupção? Historicamente, os EUA se mostram reticentes a submeter seus cidadãos à jurisdição internacional ou estrangeira. A resistência em aderir ao Tribunal Penal Internacional é só um dos exemplos disso.

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Não é uma questão meramente teórica. Por exemplo, o ex-presidente e atual candidato do Partido Republicano à Presidência, Donald Trump, foi alvo de diversas alegações de corrupção ao longo e após o seu mandato. Como o governo norte-americano reagiria a uma condenação criminal contra um ex-presidente por outro país?

Os possíveis impactos do FEPA são amplos e variados. O sucesso da sua implementação dependerá de como autoridades norte-americanas absorveram e aplicarão as lições derivadas de décadas de vigência da sua legislação-irmã, o FCPA.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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Guilherme France
Advogado, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre em Histórica, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas. Pesquisador e consultor de organizações internacionais e ONGs em temas relacionados à transparência, anticorrupção e integridade
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