Como se não bastassem a pandemia da covid-19 e o atoleiro em que a economia se encontra desde 2015, o Brasil foi assolado por mais uma crise, desta vez no âmbito da política: Sergio Moro, então bastião e superministro do governo Bolsonaro anunciou sua demissão do cargo devido às diversas disputas internas com o presidente. Assim que o clã Bolsonaro se sentiu ameaçado pelas autoridades policiais, o chefe da Polícia Federal foi demitido sem o consentimento do então ministro da Justiça. Do ponto de vista jurídico, como dispõe o art. 37, inciso XI da Lei nº 13.844/19, a Polícia Federal se encontra, a princípio, sob o controle do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Mas como poderia Moro ser reconhecido como "superministro da Justiça", se nem sequer era capaz de decidir sobre a exoneração de seus assessores mais próximos?
Ansiedade política em tempos de pandemia
Sem Moro, que juntamente com o ministro da Economia, Paulo Guedes, era uma das principais figuras do gabinete, a manutenção do governo Bolsonaro dentro dos limites da institucionalidade tornou-se extremamente complicada. Como um lutador solitário em prol de sua sobrevivência política, Bolsonaro vê-se isolado por todos os grandes partidos políticos e ativou o seu "modo de sobrevivência", segundo o qual o funcionamento regular das instituições jurídico-políticas torna-se algo secundário.
Contudo, é necessário ter em mente que o mundo atravessa uma gravíssima crise sanitária. Os brasileiros, infelizmente, sentem-se abandonados pelas autoridades estatais. Jair Bolsonaro não é somente hostil à democracia. Ele se filia, também, a uma corrente conspiratória que nega a letalidade e importância da atual pandemia. Quando o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandeta, começou a implementar um plano minimamente factível para a contenção da pandemia, foi prontamente demitido pelo Presidente. As mortes, a situação hospitalar do brasil, um bem-estar mínimo para a população - tudo isso pouco importa para atual governo, como um outro sonoro "E daí?!" revela.
A vida humana foi rebaixada a uma situação de total irrelevância no âmbito da política e ao contribuir ativamente para esse fato, Jair Bolsonaro despojou o exercício de seu poder político de qualquer possível legitimidade. Todos os governos são, em certa medida, suscetíveis a crises, o que ensejaria a objeção de que se trata de uma crise normal no decurso do desenvolvimento da história constitucional de um Estado. No entanto, a situação atual do Brasil é totalmente anômala, uma vez que a ansiedade e a incerteza atingiram uma dimensão institucional. Franz L. Neumann afirma, com razão, que o armamento das teorias da conspiração com os instrumentos da razão de Estado é um forte sinal do declínio das democracias liberais[1].
Impeachment....e depois?
O impeachment de Bolsonaro é motivo de preocupação e de protestos diários. Assunto rotineiramente discutido, Bolsonaro tem violado repetidamente tanto a Lei n.º 1.059/50 quanto os dispositivos constitucionais que tratam sobre os crimes de responsabilidade.
Na análise do procedimento de Impeachment no sistema jurídico brasileiro, deve-se ter em conta que as condutas listadas no artigo 85 da Constituição Federal são apenas de natureza exemplar. Tal como demonstrado pelo julgamento da ex-presidente Dilma Rouseff, uma possível condenação depende fundamentalmente de uma maioria qualificada no Congresso. Se o Congresso expressar sua vontade política no sentido da destituição, o titular do cargo não poderá fazer muito para se defender. O inverso também é possível. Com o apoio de uma forte base parlamentar, as violações orçamentárias cometidas pelo presidente Michel Temer, que custaram a sua antecessora o cargo, não levaram necessariamente ao seu impedimento.
Em virtude do chamado presidencialismo de coalizão, que se refere ao desenvolvimento atípico do sistema político brasileiro desde 1988, o processo de impeachment cumpre uma função semelhante ao da moção de censura nas democracias parlamentares. Como afirmado anteriormente, Bolsonaro perdeu o apoio dos grandes partidos e, por esta razão, muitos especialistas consideram altamente provável um prematuro fim de seu governo. Não a gravidade das suas violações, mas sim uma base frágil no Congresso, ainda mais debilitada pela demissão da Moro, que constitui o ponto decisivo para este prognóstico político.
Se os indícios apontam para uma resposta uníssona em relação ao fim do governo Bolsonaro, o mesmo não pode ser dito sobre a questão acerca do futuro político do País. Longe de reforçar o poder normativo das instituições jurídicas e políticas, a eventual destituição colocará em evidência a fragilidade da jovem democracia. A aparência de ineficácia das instituições democráticas é o melhor pano de fundo para o reforço dos movimentos antidemocráticos. Se Bolsonaro for destituído do cargo, o ex-General e Vice-Presidente Hamilton Mourão assumirá a o cargo. Uma vez que Mourão, entre outras coisas, continua a negar os crimes cometidos pela ditadura militar, sua presença na Presidência da República representaria um retrocesso significativo para o País.
O debate sobre o impeachment deveria ser, acima de tudo, acompanhado de uma discussão sobre uma possível reconstrução dos mecanismos de responsabilização do presidente da República perante o Congresso. Assim que o futuro titular do cargo não tiver uma base sólida naquele órgão representativo, será novamente assombrado pelo espectro do impeachment, independentemente da natureza ou da gravidade das violações.. Deve-se destacar que a estabilidade que prevaleceu entre 1994 e 2014 se baseou principalmente num compromisso informal entre os principais atores políticos. Muitas vezes motivados por causas escusas, os partidos políticos em suas respectivas bases governamentais uniram forças para assegurar o funcionamento do sistema político sem maiores problemas durante aquele período[2].
Atualmente, os brasileiros sofrem as graves consequências da ruptura deste compromisso - desencadeada então no governo Dilma Rousseff. De acordo com as regras formais e informais do sistema político brasileiro, o destino de Bolsonaro é praticamente sacramentado. Ele só tem uma última alternativa: continuar a flertar com o autoritarismo.
*Douglas Carvalho Ribeiro, doutorando em direito eleitoral na Universität Hamburg (Alemanha), advogado e membro da Academia de Direito Político e Eleitoral (Abradep)
[1] Franz L.Neumann, Angst und Politik, in: Wirtschaft, Staat, Demokratie. Aufsätze. 1930-1954, Frankfurt 1978, p. 424-459, p. 434.
[2] Marcos Nobre, Imoblismo em Movimento: Da abertura democrática ao governo Dilma, São Paulo 2013.
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