Recentemente foi apresentada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública Ricardo Lewandowski uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), a qual vem recebendo muitas críticas da sociedade civil organizada. O texto propõe alterações nos artigos 21, 22, 23, 24 e 144 da Constituição, estabelecendo a competência da União para ditar normas gerais de políticas de segurança pública e de defesa social.
Para a sua aprovação seria necessário o quórum qualificado, em dois turnos de votações no Senado e na Câmara. Vale dizer, no mínimo 49 votos dos senadores e 308 dos deputados federais. Isso garante uma certa tranquilidade, pois há muito caminho a se trilhar ainda.
Dentre as medidas sugeridas nessa PEC destaca-se a inclusão no ordenamento constitucional de um “Sistema Único de Segurança Pública” (SUSP), a revisão das competências da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a constitucionalização do Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária.
Nesse conjunto de alterações, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) passaria a se chamar ‘Polícia Ostensiva Federal’ e teria novas funções, porque, além de atuar nas rodovias, hidrovias e ferrovias, desde que autorizada pela autoridade da União à qual está subordinada, a referida proposta prevê também que a tal ‘polícia ostensiva’ poderá, conforme se dispuser em lei: I - exercer o policiamento ostensivo na proteção de bens, serviços e instalações federais; e II - prestar auxílio, emergencial e temporário, às forças de segurança estaduais ou distritais, quando requerido por seus governadores.
Faz-se aqui, desde logo, a advertência necessária de que subverter a ordem do que está sendo construído há muito, com base na mera expectativa de melhora sistêmica, não parece ser a melhor estratégia. Como já se escreveu, a ação revolucionária irrefletida obedece antes a um “princípio de preguiça”: a preguiça de quem é incapaz de pacientemente estudar e reformar a comunidade real, optando antes por “atalhos” e pelas “facilidades falaciosas” da destruição e da recriação totais (COUTINHO, João Pereira. As Ideias Conservadoras – Explicadas a Revolucionários e Reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 98-99.)
Certo é que o sistema de segurança pública brasileiro não é perfeito, até porque nenhum modelo do mundo o é. Mas não se pode negar que, de alguns anos para cá houve melhoria gradativa na sensação de segurança da população, o que aponta para o acerto do que vem sendo construído séculos a fio.
Considerando a extensão continental do Brasil e a existência de 27 Unidades da Federação, os governadores receberam a possibilidade, refletida na Constituição Federal de 1988, de determinarem como as suas polícias estaduais (Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Penal) atuariam na repressão à criminalidade. Principalmente porque o peso orçamentário da manutenção do equipamento público de segurança cabe também àqueles.
Prova disso é que, no que tange à segurança de nossas vias rodoviárias, o Brasil possui, ao todo, 1.563,6 mil quilômetros de malha rodoviária, sendo 94,7% rodovias estaduais e municipais, e somente 5,3% federais (76,5 mil quilômetros).
Muito por essa maior centralidade nos governos estaduais, a Polícia Rodoviária Federal, que tem hoje cerca de 12.356 profissionais, viu-se em uma situação confortável para poder pleitear novas missões, apesar de ser fato que, na verdade, poderia o Governo Federal ter proposto na PEC que a PRF patrulhasse também as rodovias estaduais, aliviando o trabalho que a Polícia Militar faz anomalamente.
Ao revés, é o oposto que se está percebendo: um projeto de alteração constitucional para que a PRF invada funções típicas das Polícias Militares, deixando para essas o peso do que antes era exclusivamente daquela.
Ainda que o trabalho de ostensividade nas rodovias brasileiras tenha pesado historicamente nos ombros das polícias militares, pois a esmagadora parte das rodovias está sob a responsabilidade fiscalizatória das polícias estaduais, a retirada da PRF dessa obrigação trará novos problemas aos governadores.
É que, sendo chamada a PRF para realizar outros misteres, quem vai ocupar essas lacuna no sistema de segurança pública estadual? No Brasil as forças de segurança são compreendidas como peças interconectadas em uma grande engrenagem constitucionalizada. Portanto, a falha em uma dessas partes pode conduzir à sobrecarga de todas as outras e da própria justiça, causando danos sociais irreversíveis.
Estranho imaginar que isso não esteja sendo discutido a fundo, pois, muito do que de ilícito entra no Brasil, notadamente drogas e armas destinadas a grupos criminosos organizados, ingressa no território nacional pelas nossas vias terrestres. Veja-se que somente no Estado do Paraná, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, as forças de segurança apreenderam 138,3 toneladas de drogas em estradas de janeiro a julho de 2024 - um aumento de 44,5% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando foram tiradas de circulação aproximadamente 95,7 toneladas.
Outro aspecto altamente criticável, nessa ideia de criação de uma Polícia Ostensiva Federal, é a inexistência de dados sobre o impacto orçamentário da medida, uma vez que, em países de dimensão territorial continental semelhantes, como a Rússia, a China, a Índia ou até de extensões menores como Colômbia, Peru ou Turquia, as Polícias Nacionais de caráter ostensivo exigem significativa estrutura em efetivo e recursos materiais.
A título de comparação, a Direção Geral de Segurança (em turco: Emniyet Genel Müdürlüğü) ou Organização Policial Turca (em turco: Türk Polis Teşkilatı), que é a força policial civil nacional responsável pela aplicação da lei da República da Turquia, tem mais de 335 mil funcionários. Outro exemplo é a Guarda Nacional da Federação Russa (em russo: Федеральная служба войск национальной гвардии Российской Федерации. transliterado “Serviço Federal das Tropas da Guarda Nacional da Federação Russa” ou Rosgvardyia (em russo: Росгвардия). Essa possui estimados 340.000 servidores.
Esses paradigmas suscitam a dúvida se a União teria mesmo as condições fiscais para prover ao menos metade deste efetivo, mormente considerando a insuficiência atual do efetivo da Polícia Rodoviária Federal, o que, inclusive, impossibilita o cumprimento adequado de suas atuais limitadas atribuições legais e constitucionais.
Ademais, para tentar corrigir essa lacuna gerada pela vaguidão das novas atribuições da PRF, ainda que com recursos orçamentários geralmente escassos, os governadores seriam obrigados a adotar algumas medidas, dentre elas: 1)- tirar Policiais Militares do patrulhamento das cidades e colocar nas rodovias federais em seu território; ou 2) - aumentar os tributos para contratar mais policiais para dar conta dessa função adicional, onerando ainda mais o orçamento das famílias.
Destarte, tal proposta, além de violar o pacto federativo, também parece afrontar indiretamente o disposto no artigo 167, § 7º, da Constituição Federal, o qual não permite que a União crie encargos aos demais entes federados, sem previsão de fonte orçamentária ou financeira.
E, nesse caso, a União não prometeu repassar integralmente recursos para custear o aumento dos gastos causados ao estado, mas somente indicou que haverá um Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, com o objetivo de garantir recursos para apoiar projetos, atividades e ações em conformidade com a política nacional de segurança pública e defesa social.
Daí, seja pela falta de repasse, seja pela insuficiência orçamentária estadual, as rodovias pátrias, pela falta de proteção mínima, escancarar-se-ão ainda mais para a circulação de drogas e armas, facilitando o fortalecimento das organizações criminosas no território brasileiro.
Exposto o referido problema, outro há de ser debatido. O citado anteprojeto da PEC da Segurança Pública traz uma medida ainda mais perigosa do que a anterior: o sufocamento da Polícia Federal com um volume absurdo de crimes, hoje apurados pelas Polícias Civis.
Ao disciplinar que cabe à Polícia Federal apurar infrações penais “cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, como as cometidas por organizações criminosas e milícias privadas, segundo se dispuser em lei”, transparece, pelo uso de uma exemplificação mal postada, que quase tudo deverá ser investigado pela Polícia Federal, sobrecarregando uma instituição republicana já afetada por cortes orçamentários sucessivos, escassez de efetivo e enorme demanda operacional.
Até porque, nos dias de hoje, quase todas as organizações criminosas que atuam no Brasil possuem abrangência interestadual, o que aponta para um severo esvaziamento constitucional das atribuições das 27 Polícias Civis, sem falar que, reflexamente, imporá um volume de trabalho no mínimo 27 (vinte e sete) vezes maior à Polícia Federal.
Só para exemplificar, todos aqueles golpes praticados por organizações criminosas em que os golpistas estão em um estado, mas agindo por interpostas pessoas em outras localidades, deverão, em tese, ser investigados pela Polícia Federal. Até porque o elástico conceito de crime organizado previsto na Lei n. 12.850/2013 não é difícil de se impor a um grupo de pessoas minimamente organizado e atuando em nítida divisão de tarefas.
No ano de 2023, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que apresenta dados e análises sobre a violência, a criminalidade, o sistema penitenciário, as forças policiais e outros aspectos relacionados à segurança pública no Brasil, foram praticados mais de 1,9 milhões de golpes virtuais. Da forma que se está a propor, provavelmente todo esse volume seria drenado para os já tão ocupados 13.854 mil profissionais da Polícia Federal.
A quem interessaria uma Polícia Federal enfraquecida (pelo volume asfixiante dos novos crimes que precisará investigar), 27 Polícias Civis esvaziadas constitucionalmente (pela retirada de atribuições para investigar organizações criminosas) e uma ‘remodelada’ Polícia Rodoviária Federal com atribuições fluidas e podendo atuar enviesadamente em todo o território nacional?
Os questionamentos são vários, mas todos apontam para a precipitação de tal proposta e para a sua questionável habilidade de solucionar quaisquer dos reais problemas da Segurança Pública brasileira. É uma proposta que parece ter sido desenhada arbitrariamente e, agora, busca-se impor a todos a sensação de que ela é capaz de resolver os problemas do sistema de segurança pública nacional. E, o pior, tudo isso ao arrepio da oitiva de quem realmente conhece, faz e respira a segurança pública nacional.
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