Existe uma série de motivos apontados reiteradamente quando se buscam as razões de o povo brasileiro viver mergulhado em uma vida de necessidades. Valor baixo do salário mínimo, corrupção, educação de má qualidade, sistema de saúde precário e pequena cobertura de saneamento básico (água e esgoto) são, em geral, os mais lembrados.
Todos verdadeiros. Há, todavia, algumas outras questões que precisam ser analisadas com maior profundidade. Escapam do conhecimento do público leigo e nem sempre são abordadas pela grande mídia, apesar da enorme contribuição que esses aspectos têm na construção da triste realidade nacional. A começar pela rede de privilégios, antiga, perpetuada, e ainda crescente.
O Brasil é um gigante que se acostumou a dormir no berço esplêndido dos privilégios. Eles estão por toda parte: no foro privilegiado que beneficia cerca de 56.000 ocupantes de cargos públicos, na possibilidade de reeleição para cargos executivos, na flexibilização da Lei da Ficha Limpa, na concessão de aposentadorias precoces e de altíssimo valor, em penduricalhos de salários no serviço público (nos três poderes) que burlam o teto constitucional, entre muitos outros.
Quase não se fala dos gastos com funcionalismo público, que consomem de 12,8% a 13,0% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. É muito mais do que a média (9,8%) dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). São gastos excessivos, que somam mais de R$ 300 bilhões por ano e colocam o Brasil como o sétimo país do mundo que mais gasta com funcionalismo em termos de percentual do PIB.
Mais grave é que se gasta muito, sem que esse dinheiro seja destinado à remuneração adequada de profissionais da educação, da saúde, da segurança pública, de infraestrutura, e tampouco para a melhoria da qualidade dos serviços públicos oferecidos à população. Nesse quesito, o Brasil está estagnado na 30ª posição entre outras economias mais desenvolvidas do mundo.
Soma-se a isso o extraordinário déficit previdenciário no regime geral (2,97% do PIB) e no regime dos servidores públicos federais, ativos e inativos (0,93% do PIB), totalizando anualmente cerca de R$ 417 bilhões, o correspondente a 3,90% do PIB.
Outra questão grave é o volume dos gastos tributários da União, renúncias fiscais concedidas a bel-prazer pelos governantes da ocasião. São cada vez maiores: correspondiam a 2,01% do PIB em 2003; saltaram para 3,48% em 2009 e, em 2022 somaram 4,65% do PIB. Isto é, cresceram nada menos que 131% em 19 anos. Ainda mais grave é que esses gastos tributários privilegiam com 65% do volume total as regiões sul e sudeste, justamente as mais desenvolvidas, contrariando os artigos 43, 151, 155 e 165 da Constituição Federal, segundo os quais as renúncias fiscais devem ter como objetivo a redução das desigualdades regionais e sociais. A Carta Maior é solenemente ignorada e o abismo se acentua a cada ano.
Iniciativas parlamentares também contribuem para sangrar os cofres do país. Um exemplo é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), em tramitação no Congresso Nacional, obrigando a União a absorver cerca de 50 mil servidores públicos de três extintos territórios federais - Roraima, Rondônia e Amapá – depois de União ter bancado todos os gastos com esse funcionalismo por mais de 15 anos. A proposta, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Amapá), com o apoio de outro senador daquele estado, Davi Alcolumbre, ex-presidente do Senado e da Comissão de Constituição e Justiça, se aprovada representará para a União uma despesa estimada em R$ 6,5 bilhões por ano.
Parece não haver limites. Outra PEC confere anistia a políticos e partidos que cometeram irregularidades na prestação de contas dos fundos partidário e eleitoral. E de forma retroativa, ao custo estimado de R$ 23 bilhões.
Além disso, está em curso uma minirreforma eleitoral que abranda punições a legendas e políticos, e busca eliminar a exigência de cotas para candidatos pretos e mulheres. Em outra frente, existem ações no Congresso para aumentar o valor já bilionário do Fundo Eleitoral, que em 2022 foi de R$ 4,9 bilhões.
A população paga a eleição de muitos que buscam ainda mais privilégios. No Congresso Nacional, por exemplo, há senadores com 60 ou 70 assessores, número maior do que a média das pequenas empresas brasileiras (dado da Agência Brasil de Comunicação – EBC) e com salários bem acima desse segmento da iniciativa privada.
No país dos privilégios e do ‘jeitinho brasileiro’, ministros e assessores especiais recebem vencimentos acima do teto de R$ 41.650,92 por meio de nomeações para conselhos estatais. A manobra não é ilegal, mas fere a ética, péssimo exemplo num país tão carente de bons valores.
Os casos não são raros. Agora, anos após ter firmado acordo de leniência no âmbito da Operação Lava-Jato, com homologação judicial e do Tribunal de Contas da União, um grupo econômico obteve redução de R$ 10 bilhões para R$ 3,55 bilhões do valor que terá de devolver aos cofres públicos, a pretexto de erro de cálculo, além da possibilidade de pagar com débitos fiscais. Privilégios que não alcançam outros devedores do Fisco.
Quando se analisam todas essas questões fica fácil entender porque o Brasil ainda padece de tamanhas desigualdades regionais e sociais. De acordo com o Censo 2022 do IBGE, 62,9 milhões de brasileiros vivem em situação de pobreza, ou seja, mais de 30% da população nacional. Levantamento recente do jornal O Estado de S. Paulo, com base em números da Fundação Getúlio Vargas, apontou que 3.132 municípios (56% do total) têm população com renda média abaixo da linha da pobreza (R$ 497,00 por mês).
São números assustadores, mostrando o equívoco do governo federal de apostar, nas últimas décadas, em buscar maior arrecadação para repassar mais recursos para os municípios e irrigar seus projetos sociais. Solução ineficiente porque mais de 60% desses recursos vão para o custeio das folhas de pagamento das prefeituras municipais e não para investimentos em saúde, educação, habitação, saneamento e segurança pública, como seria de se esperar.
Como agravante, temos que o reforço na arrecadação não se dá por meio da redução da sonegação nem por meio da busca de maior eficiência da máquina pública, mas pelo aumento da carga tributária, sobretudo da tributação sobre o consumo, que responde por 40% das receitas tributárias. É um imposto regressivo e injusto, porque penaliza fortemente as classes mais pobres.
Vale lembrar o que afirmou o economista Marcelo Nery, da FGV, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (17/09/2023, página A8): “O Bolsa Família teve uma contribuição na redução de desigualdade, mas o efeito deletério da tributação foi tão forte que eles desfizeram tudo o que o Bolsa Família fez”.
Nosso histórico é ruim e o horizonte, sombrio. O arcabouço fiscal aprovado em agosto autoriza o Poder Executivo a praticar aumento de gastos, isto é, dá carta branca para a prática da política fiscal expansionista.
É preciso lembrar também que o atual governo obteve do Congresso, já no início do mandato, autorização para gastar R$ 150 bilhões acima do teto e, sem apresentar nenhum plano de metas, agora, os ministros da área econômica, para aumentar a arrecadação, negociam aumento de tributação para mais R$ 146 a R$ 160 bilhões, ou cerca de 1,40% e 1,55% do PIB. Se aprovado, isso elevará a carga tributária dos atuais 33,91% para 35,46% do PIB, uma das maiores taxas do mundo.
Tudo para gerar déficit público anual de 8% PIB, resultado em novos endividamentos. A gastança totaliza 43,46% PIB e, os investimentos, apenas 1,00% a 1,40% do PIB, uma discrepância gigantesca.
O Brasil não conseguirá reduzir a pobreza e atenuar substancialmente as desigualdades sociais e regionais se continuar fomentando os privilégios, se não combater efetivamente a corrupção e se não tiver um plano de metas concebido não com sanha arrecadatória, mas com bases sólidas e foco na melhoria da condição de vida da maioria da população, corrigindo as injustiças e eliminando as distorções.
Passo fundamental é reconhecer que as desigualdades são causa de pobreza, não o inverso. Enquanto a população das regiões norte e nordeste continuarem com renda média domiciliar 30% inferior à média nacional, como acontece hoje -, e enquanto o número de pessoas vivendo em situação de pobreza não for reduzido drasticamente, haverá sempre cidadãos de segunda classe e o Brasil não será uma nação desenvolvida.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros Brasil, um país à deriva e Caminhos para um país sem rumo
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.