Há alguns dias, quando sua secretária passou o recado da Polícia Federal pedindo que retornasse o contato para marcar um depoimento, o advogado Marcelo Feller pensou que era mais um interrogatório de algum dos clientes. A surpresa veio quando, na ligação com a escrivã da corporação, foi comunicado de que a pessoa a ser ouvida era ele próprio.
" A maneira como eu recebi a notícia foi até, de certa forma, cômica", lembra. Logo que a confusão foi esclarecida, o sentimento que ficou foi o de 'choque', segundo contou ao Estadão.
Uma lembrança ajudou a ficha a cair: ver sua foto incluída nos documentos preparados pelo setor de inteligência da PF. "A minha foto, aquela descrição, o que normalmente é usado em investigações de organizações criminosas, foi chocante", disse.
O criminalista, de 34 anos, está sendo investigado por declarações feitas durante uma das edições do quadro 'O Grande Debate', da emissora CNN, por onde teve uma breve passagem. A atração reúne dois debatedores para defender posições contrárias sobre um tema previamente definido pela produção do programa. No dia 13 de julho, o assunto escolhido foi a atuação do governo federal na pandemia da covid-19 e o impacto dela sobre a imagem das Forças Armadas.
O tema foi definido na esteira da fala do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, de que Exército está se associando a um 'genocídio', em referência à presença de militares no Ministério da Saúde durante a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. O ministro comentava a ausência de um titular na pasta, então comandada interinamente pelo general Eduardo Pazuello desde a queda do médico Nelson Teich mais de 50 dias antes.
Na ocasião, Marcelo Feller citou o estudo Mais do que palavras: discurso de líderes e comportamento de risco durante a pandemia, desenvolvido em parceria por pesquisadores da Universidade de Cambridge e da Fundação Getúlio Vargas. A pesquisa concluiu que atos e discursos do presidente Jair Bolsonaro contra o isolamento social como estratégia de combate à pandemia podem estar por trás de pelo menos 10% dos casos e mesmo de mortes pela covid-19 registrados no Brasil.
Durante o debate, o criminalista usou termos como 'genocida, politicamente falando', 'criminoso' e 'omisso' para se referir ao presidente. À reportagem do Estadão, Feller explicou que a menção a genocídio foi feita sob uma perspectiva político-social.
"Eu fui instado ao debate público, jornalístico, e consignei o estudo. Expliquei como, ao meu modo de ver, pelo menos naquele momento, era um erro juridicamente se falar em genocídio. Mas que a palavra genocídio não pode só ser vista sob uma perspectiva jurídica. Tem uma construção político-social em torno da palavra. E aí, o que eu disse, e ainda acredito, é que política, antropológica e socialmente falando, baseado neste estudo, isso é um genocídio", afirma.
O inquérito para investigar as declarações foi aberto em agosto pelo delegado Victor Barbarella Negraes, da Divisão de Contrainteligência Policial. A ordem partiu do ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça. Nela, o governo federal usou a Lei da Segurança Nacional (LSN) para embasar a ofensiva jurídica. O dispositivo citado é o artigo 26, que prevê como crime 'caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação'. A pena é de um a quatro anos de prisão.
"Em tese, o referido fato pode se subsumir à conduta pica descrita no artigo 26, caput, da Lei n° 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional - LSN), em razão de a acusação lesar ou expor a perigo de lesão o regime democrático e a pessoa do Presidente da República", escreveu Mendonça. "Diante da gravidade do fato narrado, requisito a instauração de inquérito policial para a apuração dos fatos", completou o ministro, que ainda enviou o vídeo do debate ao chefe da Polícia Federal, Rolando Alexandre de Souza.
A Lei da Segurança Nacional foi sancionada em 1983, durante a ditadura militar, pelo presidente João Figueiredo, para listar crimes que afetem a ordem política e social - incluindo aqueles cometidos contra a democracia, a soberania nacional, as instituições e a pessoa do presidente da República. Desde o início da pandemia, o dispositivo foi encampado pelo governo em pelo menos quatro outras ocasiões, a maioria contra profissionais da imprensa. Especialistas ouvidos pelo Estadão classificam o uso como 'equivocado'.
Na avaliação de Marcelo Feller, a abertura do inquérito é uma tentativa de silenciamento. "Eu não sou um analista ou um cientista político, mas creio que existiria um ônus político ao próprio Bolsonaro em mover um processo. Afinal, de um lado você tem um Presidente da República, e de outro você tem um advogado de 34 anos chamado para debater em um programa. É sério que eu sou capaz de ofender a honra do presidente? Ao invés disso, o governo pega críticas que ganham visibilidade e tenta passar o recado para a coletividade de que as críticas serão criminalizadas, como se dissesse: "cuidado ao me criticar, porque eu vou te trazer problemas, eu tenho a máquina do Estado do meu lado". Acho que os próprios atos do governo, de outros casos, deixam isso claro", diz.
Durante a entrevista, Feller observou ainda que, embora seja advogado, no programa da CNN, exercia uma função jornalística, de comunicar o público. "Ser criminalmente investigado por ter informado, enquanto que não há nenhuma punição a atores do governo, inclusive ao presidente, que cotidianamente desinformam, não é só contraditório, é bastante triste para o nosso Estado de Direito", lamenta.
O advogado Alberto Zacharias Toron, que defende Marcelo Feller no caso, informou que vai entrar com habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para trancar o inquérito. "A requisição feita pelo ministro da Justiça para instaurar o inquérito com base na Lei de Segurança Nacional, contra um advogado que atuava na qualidade de órgão da imprensa, participando de um debate público, em uma emissora de televisão, nos faz retroceder aos tempos da ditadura militar. É inadmissível que, em pleno período democrático, se repita essa estratégia", afirma.
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