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Opinião | PM-SP: uma instituição subordinada ao dever de respeitar a Constituição e as leis da República

A truculência de (maus) integrantes da Polícia Militar paulista e o descontrole operacional de seus agentes, motivados pela política de segurança pública implementada pelo atual governo paulista, não podem permanecer impunes, porque representam completa, absurda e criminosa subversão dos fins que devem reger a atividade policial em uma sociedade civilizada

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convidado
Por Celso de Mello
Atualização:

A Polícia Militar do Estado de São Paulo é uma importante, histórica e quase bicentenária instituição, fundada em 1831, por lei provincial cujo projeto foi proposto pelo sorocabano Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, então Presidente da Província de São Paulo.

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Sobre ela, cabe registrar valioso estudo do saudoso Professor Emérito Dalmo de Abreu Dallari, que também foi Diretor das Arcadas (Faculdade de Direito do Largo São Francisco, USP, minha “alma mater”), intitulado “O Pequeno Exército Paulista”, 1977, Editora Perspectiva.

Essa relevantíssima instituição da República, considerada a importância de suas funções, que se apresentam definidas pela própria Constituição Federal, desta recebeu a nobre incumbência de servir, unicamente, com absoluta fidelidade, ao interesse público!

É por essa razão que a Polícia Militar, tal qual o Ministério Público, tendo em vista a própria natureza de suas altas e essenciais atribuições, não pode servir a governos (posto que ela é uma instituição de Estado), ou a grupos ideológicos, assim como não pode nem deve subordinar-se a partidos políticos, ou aos desejos pessoais daqueles que exercem o poder, não importando a posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República!

Mais do que isso, a Polícia Militar, da mesma forma que o Ministério Público, também não deve permitir que venha ela a ser manipulada ou convertida em instrumento concretizador de práticas ofensivas aos direitos básicos das pessoas em geral, notadamente das minorias e daquelas em situação de vulnerabilidade, sob pena de mostrar-se infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é a de defender a plenitude e a eficácia do regime de segurança pública e a integridade e o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana!

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Sabemos que regimes autocráticos, governantes ímprobos, cidadãos corruptos e autoridades impregnadas de irresistível vocação tendente à desconstrução da ordem democrática e ao desapreço pelas liberdades fundamentais asseguradas pela Constituição da República, temem uma Polícia Militar e um Ministério Público independentes e conscientes de seus altos compromissos com o respeito ao ordenamento constitucional, pois a Polícia Militar e o Ministério Público, por serem instituições da República, longe de se curvarem aos desígnios dos detentores do poder – tanto do poder político quanto do poder econômico ou do poder corporativo ou, ainda, do poder religioso –, têm a percepção superior de que somente a preservação da ordem democrática e o respeito efetivo às leis formadas sob a égide do Estado de Direito revelam-se dignos de sua proteção institucional.

É preciso não desconsiderar, por isso mesmo, as lições da História e reconhecer que uma Polícia Militar e um Ministério Público fortes, independentes e conscientes de sua missão constitucional e do papel institucional que lhes cabe desempenhar, sem tergiversações, no seio de uma sociedade aberta e democrática, constituem a certeza e a garantia do fortalecimento, sob a autoridade das leis, das funções de segurança pública, do respeito incondicional aos direitos dos cidadãos e do prevalecimento da supremacia do interesse público!

A notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a condenação criminal de uma pessoa, pelo fato de haver sido ela “chicoteada” durante abordagem feita por policiais militares na comarca de Itapevi/SP revela, lamentavelmente, que alguns (maus) integrantes de uma instituição respeitável como a PM paulista desconhecem os fins etica e juridicamente superiores a que a corporação policial-militar se acha constitucionalmente vinculada: servir a coletividade, respeitar os seus cidadãos e sempre agir de modo profissional e responsável, com estrita observância da Constituição e das leis da República!

O Superior Tribunal de Justiça, no caso em exame (HC 933.395/SP, Relator Min. Ribeiro Dantas, julg. em 26/11/2024), ao corretamente invalidar condenação criminal proferida em instância inferior, reconheceu o caráter abusivo e truculento da atuação da PM paulista, destacando a anomalia de conduta dos policiais militares na abordagem do suspeito, que foi criminosamente chicoteado por esses agentes do Estado após haver sido por eles surpreendido em flagrante delito de tráfico de drogas.

Ao anular a condenação desse réu, por entender destituídos de validade jurídica os elementos de prova coligidos de maneira tão vil, o STJ reputou ilícita (imprestável, portanto) a prova penal em referência, pelo fato de o comportamento esdrúxulo desses PMs haver transgredido, frontalmente, a Constituição Federal em seu artigo 5o., inciso LVI, que repudia a prova ilícita, estatuindo que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos!”

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Esse Alto Tribunal judiciário (o STJ) entendeu que as imagens das câmeras corporais dos policiais militares comprovaram a inadmissível prática, por eles (agentes da lei!!!), do crime de tortura contra o suspeito.

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“Para a quinta turma do STJ” - segundo reportou o “site” de notícias UOL -, “O Código de Processo Penal brasileiro aponta que provas colhidas em condição de tortura não devem ser validadas. O relator do caso no STJ, ministro Ribeiro Dantas, descreveu que a prática [pelos PMs envolvidos] viola tratados internacionais de direitos humanos e a própria Constituição Federal”, observando que “As câmeras corporais dos policiais [militares] registraram agressões físicas ao paciente, que se rendeu sem resistência, indicando que a abordagem foi realizada com violência, assemelhada à tortura. A Convenção Americana de Direitos Humanos e o Código de Processo Penal vedam o uso de provas obtidas mediante tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante, devendo tais provas ser consideradas nulas… “!

Concluiu-se o julgamento, que absolveu o réu chicoteado, destacando-se que “as provas obtidas pelos policiais [militares] para a condenação foram resultado de uma série de agressões físicas. Além da colheita das imagens das câmeras corporais, o laudo [pericial] do corpo de delito confirmou o que a defesa” do réu havia declarado!

Nenhum agente ou autoridade do Estado tem legitimidade para torturar (!!!) nem para praticar violência arbitrária, como agressões físicas e morais, contra qualquer suspeito, ainda que em situação de flagrância delituosa, ressalvadas as hipóteses em que se achem legalmente caracterizadas situações de legítima defesa ou de estrito cumprimento do dever legal!

Qualquer prova assim obtida, mediante tortura ou violência arbitrária, qualifica-se, negativamente, como prova revestida de ilicitude, constituindo, por efeito consequencial, prova juridicamente inidônea, inválida e totalmente ineficaz!

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A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem proclamado em inúmeros precedentes, de cuja formação eu participei como Juiz daquela Corte Suprema, que o réu tem o direito público subjetivo de não ser indiciado, de não ser denunciado, de não ser processado e de não ser condenado com apoio exclusivo em elementos probatórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites ético-jurídicos que restringem a atuação do Estado em sede de persecução penal!

E a razão é uma só: a prova ilícita — por qualificar- se como elemento inidôneo de informação — é repelida pelo ordenamento constitucional, apresentando-se destituída de qualquer grau de eficácia jurídica.

Por isso mesmo, não traduz demasia reafirmar a advertência de que a Constituição proíbe o uso de provas ilícitas.

No contexto do regime constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, impõe-se repelir, por juridicamente ineficazes, quaisquer elementos de informação, sempre que a obtenção e/ou a produção dos dados probatórios resultarem de transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo, notadamente naquelas situações em que a ofensa atingir garantias e prerrogativas asseguradas pela Carta Política.

Importante assinalar, ainda, que, no caso de Itapevi/SP, os atos de tortura e de agressão física perpetrados pelos policiais militares que efetuaram a prisão em flagrante do suspeito ofenderam e desrespeitaram, de modo chocante, a garantia de incolumidade física e moral que a Constituição da República garante a quem estiver sob a custódia do Estado, como resulta claro da cláusula inscrita em seu artigo 5o., inciso XLIX: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

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A ocorrência do grave episódio acima relatado torna indispensável que o Senhor Comandante-Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo informe os seus subordinados que o açoite foi constitucionalmente proibido no Brasil há 200 (duzentos) anos, desde a vigência, em 25 de março de 1824, da Carta Política do Império do Brasil, cujo texto, ao expressamente proibir essa punição cruel, assim dispunha em seu artigo 179, inciso XIX: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.”

Torna-se igualmente necessário relembrar os integrantes da Polícia Militar paulista que, se agirem em desvio de conduta, “chicoteando” qualquer suspeito (ou praticando, contra ele, atos de violência física ou de constrangimento moral), incidirão em prática criminosa, como o delito de tortura (Lei federal n. 9.455/1997), além de tornarem juridicamente imprestável, por ilicitude, qualquer prova obtida mediante utilização desse meio truculento, covarde e arbitrário!

Finalmente, o episódio criminoso em questão, perpetrado por (maus) policiais militares (“mais um ato isolado da PM”, como cinicamente costuma repetir, inúmeras vezes, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo), desqualifica e desautoriza, por completo, a frase jactanciosa de Guilherme Derrite, atual Secretário de Segurança Pública estadual, para quem “Os integrantes das forças policiais são os únicos e verdadeiros promotores de Direitos Humanos”!!!

Em suma: os graves eventos acima relatados, a que se associam outros fatos notórios que tanta indignação têm provocado no âmbito da comunidade paulista (e também brasileira), permitem asseverar, em conclusão, o que se segue:

(1) A truculência de (maus) integrantes da PM paulista e o descontrole operacional de seus agentes, motivados pela política de segurança pública adotada e implementada pelo atual governo paulista, não podem permanecer impunes, porque representam completa, absurda e criminosa subversão dos fins que devem reger a atividade policial em uma sociedade civilizada; e

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(2) O Ministério Público paulista tem enorme desafio à frente para, mediante firme e enérgica atuação, exercer o seu poder de controle externo da atividade policial (CF, artigo 129, inciso VII), em ordem a proteger a sociedade de tão inaceitáveis abusos perpetrados, criminosamente, por (maus) integrantes de uma corporação respeitável e essencial à segurança pública de nosso Estado.

Convidado deste artigo

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Celso de Mello
Ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (biênio 1997-1999). Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
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