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Opinião|Poeta e louco

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convidado
Por José Renato Nalini

De poeta e louco, todo o mundo tem um pouco. Será? O poeta é um ser especial. Especialíssimo. Enxerga beleza onde o não-poeta só encontra aridez. Para fazer poesia neste mundo de angústias e de revolta da natureza ante os maus tratos que o bicho homem lhe inflige, é preciso ser algo diferente. Se isso é loucura, não sei. Mas que muitos poetas foram loucos, isso a História registra. Hoje, o nome de Dino Campana é bem conhecido entre os italianos. Nasceu em 20.8.1885 e faleceu em 1º.3.1932, em Marradi, pequena cidade nos Apeninos, na fronteira entre Emília-Romagna e Toscana. Publicou um único livro de poesia: “Canções Órficas”. Personalidade selvagem e errática, visto como exemplo italiano de “poeta maldito”. Em sua adolescência já demonstrava sinais de instabilidade mental, mas concluiu sua escolaridade. Evidenciava desejo irreprimível de escapar ao normal e se dedicar à vagabundagem. Entretanto, é marca indelével na poesia italiana o seu trabalho inovador e lírico.

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Papini se deu conta de que não era um dos tantos desconhecidos pretensiosos revestidos de falsa humildade, que enviam suas ejaculações verbais às revistas e aos críticos. Compreendeu que havia rodado muito pelo mundo, mais por desespero do que com afã de busca. Conhecia bastante a moderna poesia francesa. Papini detectou que era um enfermo do espírito, não somente atacado pelo sagrado micróbio da poesia. Mas ele preferia muito mais os loucos do que os sãos, de maneira que passou a conviver com Dino Campana, recebendo-o em suas rodas de conversas.

Era encontrado a perambular por Florença, dia e noite. Tinha constante necessidade de sair de casa e percorria as margens do rio Arno. Passava horas sentado nos parapeitos do rio. Às vezes buscava companhia de outras pessoas, outras refluía e mal olhava a quem se arriscasse a turbar sua solidão. Havia dias em que se apaixonava falando de si mesmo e da arte, mudando de assunto como pássaro de galho em galha. Outros dias, estava absorto, desconfiado e inabordável. Quando discutia, costumava ser violento e quase ameaçador. Raramente ria e seu riso era triste e permanecia na flor dos lábios. Quase sempre estava mal-humorado e preocupado, vendendo um exemplar sujo e amassado dos seus “Cantos Órficos”, pobremente impresso em Marradi. Antes de entregar o exemplar a um incauto comprador, olhava bem nos olhos da pessoa e arrancava algumas páginas do volume. “Estas não são adequadas para você e é inútil que as leia!”. Quando Marinetti quis comprar um desses livros, Dino arrancou quase todas as páginas.

Demonstrava estranha admiração pela Alemanha. Talvez se imaginasse de origem nórdica, algo que talvez proviesse de sua barba loura e olhos azuis. Conhecia bastante a língua alemã e, por esse motivo, Papini o encarregou de traduzir uma obra filosófica. Mas ele nunca terminava o trabalho.

Afirmava que havia terminado, mas estava a revisar. Um dia, para convencer Papini de que trabalhara na tradução, fê-lo ir à sua casa. Mostrou um pacote manuscrito, só que a metade inferior das folhas estava queimada e a superior enegrecida pelas chamas. Disse que havia jogado ao fogo o manuscrito e que logo o havia recolhido, um pouco queimado, para demonstrar que não havia mentido. Mas que na verdade, não queria que aquela tradução fosse publicada.

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Condoído de sua situação de poeta-andarilho, Papini o convidava a almoçar em sua casa. Mas ele chegava muito tarde, quando a refeição já terminara. Embora os donos da casa, Papini e sua mulher, insistissem que ele comesse algo, se recusava. Dizia que acordara tarde e só comparecera para agradecer o convite.

De vez em quando voltava à sua aldeia, cansado da cidade. Certa feita escreveu de lá, pedindo que Papini devolvesse manuscritos seus que dizia haver entregue para análise. Mas não entregara nada. Foi a resposta de Papini. Então ele escreveu uma carta furibunda, dizendo que voltaria com um punhal afiado para se apoderar, por bem ou por mal, de seus preciosos escritos. Papini respondeu que aguardava tranquilo. Não havia entregue quaisquer originais e, portanto, não podia restituir o que não tinha.

Esquecia-se da ameaça. Voltava a pedir emprego. Papini o perdeu de vista e soube que em 1919 fora recolhido como enfermo perigoso, num manicômio de Castelpuci, onde morreu em 1932. Amigos o sepultaram na Igreja de Badia, em Settimo. O tempo reconheceu sua sensibilidade, sua fantasia nostálgica e sua pioneira experiência poética.

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Daniela Ramiro/Estadão
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