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Opinião|Por que, Dr. Moro?

A vida me levou a ser doleira. Por indução, fiz evasão de divisas, sempre crendo que a parte beneficiada arcasse com a responsabilidade fiscal e eu com a pequena parte que me era competente. E eu nunca neguei

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convidado
Por Nelma Kodama
Nelma Kodama Foto: Arquivo pessoal

Não quero soar repetitiva e tampouco trazer luz a quem já não mais está sob os holofotes, mas há que se fazer justiça – perdoem-me o trocadilho – à pergunta. O título deste artigo é uma paráfrase de mim mesma, em entrevista concedida ao programa Pânico, em meados de junho de 2024. Fato é que ainda aguardo a resposta e, enquanto aguardo, vou aqui divagando sobre a minha vida após a lava-jato.

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Sempre digo a quem me é mais próximo que o documentário “Doleira”, da Netflix, conseguiu resumir muito bem, em uma hora e trinta e quatro segundos, um período da minha vida (aliás, abro aqui parênteses para mencionar o juiz Fabio Roque, que justamente utilizou-se do senso de liberdade de expressão e direito à informação e permitiu que parte das filmagens fosse gravada no Presídio da Mata Escura, em Salvador, com todo o suporte da Tx Filmes, que respeitou as regras da Lei do SAP , enquanto eu cumpria pena no sistema prisional em Salvador). Mas, os detalhes mais profundos dessa vida necessitariam de algumas horas, dias ou meses a mais de duração. E teriam temas e classificações para todos os gostos – da comédia ao drama, passando pelo horror. Desde a classificação livre até casos extremos de violência para 18+, mas deixemos isso para os próximos capítulos.

Hoje, quero deixar um pouco de lado o que já foi falado e dar continuidade ao que vivi fora do foco. E, para dizer o principal, eu perdi o medo!

O que seria capaz de me parar?

Bem, eu já fui presa; eu já fui, como dizem os mais jovens, “cancelada”, em épocas que o cancelamento ainda não era assim chamado; eu fui abandonada por amigos, por alguns familiares, por amores; eu fui perseguida; eu fui violada e entendam isso como quiserem... Ah, e eu fui presa de novo, dizem que por organização criminosa e tráfico internacional de drogas, em uma situação em que eu não poderia ter sido mais inocente! Uma das maiores injustiças que eu jamais ousei cogitar.

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Mas, na verdade, eu fui presa novamente pelo estigma que infelizmente ainda carrego!

Pensei em falar que a lava-jato havia me trazido o agridoce dessa vida, mas retiro agora mesmo esse pensamento. A lava-jato me trouxe as agruras dessa vida. Humildemente peço a você, querido leitor, que se pergunte por que eu haveria de mentir?

A vida me levou a ser doleira. Por indução, fiz evasão de divisas, sempre crendo que a parte beneficiada arcasse com a responsabilidade fiscal e eu com a pequena parte que me era competente. E eu nunca neguei. Nunca! Estive lá e, resignada, em residência absoluta!

Cumpri mais do que foi me imposto (mais uma vez, perdoem-me o trocadilho infame): 2 anos 3 meses e 11 dias em regime fechado, longe da minha família. Eu entrei em uma seara inexplorada, até então, por uma mulher. Isso causou, para dizer o mínimo, estranheza, curiosidade. Para dizer o máximo, atenção.

Mas, não, não farei disso um grande drama, porque não me apraz, mas essa atenção criou a imagem da primeira “bandida” presa pela lava-jato. A mente criminosa. Depois, a mandachuva do sistema prisional. Depois, a primeira “delatora” que iniciou o efeito dominó (lembro que o primeiro delator foi um homem, fraco, que não durou nem cinco minutos sob a pressão dos porões da lava-jato). E, ao longo de tudo isso, a “Amada Amante”. Querem melhor cenário para a vilã de uma novela brasileira?

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Então, unam-se todos os pontos e coloquem essa vilã em terras além-mar, um ex-namorado, uma oportunidade e bingo! A pessoa perfeita para carregar a culpa, pasmem, de organização criminosa e tráfico internacional de drogas. Em um mergulho um pouco mais profundo, vê-se que a operação tinha seu próprio doleiro e não, definitivamente não era eu!

Com a licença de mencionar um diálogo neste artigo, aqui segue o que se seguiu após eu ser presa em Portugal. Isso aconteceu em um domingo, enquanto eu mofava em um lamaçal de dejetos humanos dividindo espaço com o meu colchão no chão.

Eu falei ao delegado:

- O senhor sabe que eu não sou traficante.

Recebi um profundo olhar do doutor à minha frente.

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- O senhor sabe que eu não sou traficante... e, quase clamando, repeti: O senhor sabe que eu não sou traficante!

Nesse momento, recebi a resposta:

- Quando vi o seu nome, eu pensei que eu peguei um troféu! O meu troféu!

Em tempos modernos, não só mais a ocasião faz o ladrão, mas a opinião também o faz.

Hoje, retomo minha vida, um dia de cada vez.

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Levanto antes do amanhecer e foco nos meus novos negócios, na esperança de que há de chegar a hora em que esse país me torne mais fácil conseguir trabalhar. Tento não pensar no que passou e no que ainda se passa, tento não pensar na dívida – injusta - de mais de 100 milhões de carrego na receita. E continuo me erguendo e reerguendo, me reinventando com a brava coragem de uma mulher igual a tantas outras.

Mas, por mais que eu tente não pensar no passado, um pedaço de metal ainda me liga a ele e teima em marcar fisicamente o que a minha mente se nega.

Retomando o assunto da minha rotina, eu acordo antes do amanhecer, às 4h30, para eu ter mais tempo para me reestruturar, porque antes das 18h, todos os dias, o meu passado me obriga a me recolher.

E essa é a minha vida após a lava-jato, até quando quiserem que assim eu viva.

Enquanto isso, em 2024 haverá eleições. E, só um lembrete: não é o contribuinte que está pagando as campanhas.

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Mas, estou fora de casa terminando este artigo e já são 17h. Preciso interromper meu raciocínio porque meu passado me chama de volta.

Por que, Dr. Moro?

Por quê?

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