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Opinião|Por que nasci nesta era?

Esse desconforto existe há tempos. Quando se lê o que Cícero dizia sobre a juventude romana, deduzia-se que ele sentia saudades de tempos idos e não necessariamente vividos por ele. E também se encontram em figuras lendárias da História o mesmo desconforto, a mesma sensação de descontentamento com o seu tempo

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convidado
Por José Renato Nalini

Uma das características dos humanos é não aceitarem a época em que vivem. Insatisfação natural de quem gostaria de ter nascido em outro século ou de ainda não ter nascido, para poder usufruir das maravilhas que ciência e sua serva, a tecnologia, ainda oferecerão às futuras gerações.

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Esse desconforto existe há tempos. Quando se lê o que Cícero dizia sobre a juventude romana, deduzia-se que ele sentia saudades de tempos idos e não necessariamente vividos por ele. E também se encontram em figuras lendárias da História o mesmo desconforto, a mesma sensação de descontentamento com o seu tempo.

Não é traição julgar-se prejudicado por ter nascido naquele que de longe seria o melhor dos séculos possíveis. Dante Alighieri era um descontente com seu tempo. Não estava satisfeito com o que lhe era dado vivenciar, nem com a raça humana em geral.

Todos podemos ter sensação análoga. Estar num mundo vazio de toda virtude e prenhe de malícia. As atividades humanas parecem, todas elas, exercidas sem exceção de modo inferior. Até as profissões mais nobres envilecidas por ocupadas por homens medíocres, volúveis e pecadores. Ao escrever “A Divina Comédia”, Dante incluiu esse tipo de gente na categoria de animais brutos e semelhantes aos mortos.

Teria ele razão? Na visão de Giovanni Papini, autor de um precioso livro, hoje pouco lido – “Dante Vivo” – “a sua pequena Pátria, Florença, parecia-lhe um antro de usuários, de ladrões e de frenéticos; a sua grande Pátria, a Itália, a brava terra itálica, e um navio sem piloto ao sabor da tempestade; abandonada por quem devia governa-la; estraçalhada pelas discórdias intestinas; entregue a gente ambiciosa e indigna: era e devia ser dona, senhora; e, no entanto, é escrava. Seus príncipes são milhafres a corvejarem por cima de cadáveres e suas cortes, sinônimo de torpeza”.

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Dante não poupava ninguém. A Igreja era pecadora e ladra. “Os pelados deixam de lado os Padres e os Doutores para se entregarem ao estudo das Decretais. Os pregadores alimentam o povo com charlas; os frades só cuidam de comer e passar bem; e todos aspiram a tornar-se ricos. E como podia ser de outra maneira, uma vez que o chefe da Igreja é o “príncipe dos novos fariseus”, como Bonifácio VIII; ou um traidor, “pastor sem lei”, como Clemente V; ou um avarento que prefere o São João dos florins a São Pedro e a São Paulo, como o papa João XXII”?

Nem se fale então da política reinante. Cada qual interessado em satisfazer sua volúpia de poder e de riqueza. Completamente esquecidas as necessidades da população. Notadamente, a mais miserável, que prolifera, enquanto a categoria dos milionários é cada vez mais poderosa e numericamente menor.

Não é difícil encontrar hoje, em pleno primeiro quartel do Século XXI, quem se sinta qual Dante, no século XIV, em Firenze: “Nada, pois, no seu tempo, lhe agrada, nada o satisfaz. O presente para ele representa o mal, a decadência, a corrupção, a vergonha. E é por isso eu, em busca de conforto, refugia-se no passado e no futuro. Como todos os poetas, Dante é um nostálgico; e, como todos os profetas, um messiânico. Sente saudades do passado, da Idade do Ouro; nostalgia da Igreja primitiva, ainda não corrompida pela ambição e pela fome de riquezas; nostalgia de Roma antiga e imperial”.

Também é fácil conhecer pessoas que exercem, religiosamente, o ofício do saudosismo. “No meu tempo...” e lá vem lamento. Tudo parecia mais honesto e puro no passado. Cada vez mais distante, cada vez encarado com saudade maior.

Só que a simples evocação saudosa do passado não satisfez um espírito voluntarioso e ambicioso como Dante. Aborrecido e insatisfeito com o presente, voltou-se, ansiosamente, para o futuro. A “Divina Comédia” é o anúncio de uma renovação do homem e do mundo. Se hoje existe a treva, mas ontem fulgia a luz, esta voltará a fulgir amanhã.

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Papini observa que “os críticos e os desprezadores do presente em geral não são estimados pelas maiorias. Entretanto, entre esses desprezadores do presente encontram-se também os maiores vultos da humanidade. E não foram, estes, movidos em suas invectivas, por motivos de despeitada soberba, nem por vontade de desdizer a massa dos felizardos; mas pelas mesmas qualidades que constituem o fundamento de sua grandeza”. O ânimo dos poetas, e todos os grandes homens são, no fundo, como poetas, é mais sensível do que a índole dos homens comuns. As primícias da humanidade detectam os supremos valores e, por isso, a realidade comum parece o que é: uma mistura de misérias, de culpas e de erros. Um poeta feliz com o mundo em que vive, na verdade não é poeta.

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Werther Santana/Estadão
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