Em uma era cada vez mais dominada pela tecnologia, os avanços da inteligência artificial (IA) tanto sinalizam para um potencial transformador quanto para riscos alarmantes. A capacidade de se gerar vídeos ultra-realistas por meio da IA, incluindo os de teor pornográfico, surgiu como uma poderosa ferramenta de violência. Essa nova modalidade de agressão digital dirige ataques majoritariamente contra mulheres em um ambiente virtual onde os agressores operam frequentemente sob o manto do anonimato e encontram abrigo em legislações insuficientes.
O uso mal-intencionado de deepfakes é multifacetado, evidenciando uma diversidade de motivações. Em alguns casos, os ataques digitais são impulsionados por sentimentos pessoais, como vingança ou ciúme. Em outros, são usados como instrumento de extorsão, numa situação em que a ameaça de exposição serve para pressionar a vítima, culminando em chantagens ou exigências financeiras. No ambiente político e corporativo, essas manipulações digitais frequentemente buscam desacreditar ou silenciar mulheres em posições destacadas, comprometendo suas carreiras e reputações. Independentemente de qual tenha sido a alavanca, os danos causados às vítimas, sejam psicológicos ou reputacionais, são muitas vezes profundos e, em alguns casos, irreversíveis.
No universo cibernético de um mundo digital muitas vezes inóspito, as mulheres se deparam com inúmeros desafios contra os quais precisam conseguir se defender. A ameaça contínua de retaliações, somada ao estigma e ao medo de intensificar a exposição indesejada - ainda que a materialidade dos vídeos (ou mesmo áudios) não se sustente, por serem totalmente falsos ou terem sido manipulados - frequentemente desencoraja as vítimas de denunciar os abusos. A legislação de muitos países mostra-se desatualizada diante dessa nova realidade, criando um vácuo legal que pode, inadvertidamente, fomentar a prática desses delitos. Ademais, a lentidão e os custos inerentes ao processo judicial desmotivam as vítimas a buscar justiça.
No Brasil, o panorama é particularmente alarmante. Ainda na tentativa de compreender e enfrentar a ameaça dos deepfakes, o país, assim como muitos vizinhos latino-americanos, carece de legislação específica. A inaptidão do sistema legal em lidar com crimes digitais muitas vezes de grande magnitude cria um cenário propício à impunidade, dificultando a atuação do aparato jurídico-policial. A desinformação social acerca do tema agrava ainda mais a situação.
Este é, inquestionavelmente, um cenário complexo. A conscientização e a educação digital, portanto, tornam-se vitais na prevenção e combate a tais abusos. Todos devem exercer prudência nas interações online, limitando o compartilhamento de dados pessoais e se mostrando cientes dos riscos associados a determinadas plataformas.
Se os avanços tecnológicos trouxeram consigo desafios inéditos, é certo que estes exigem respostas criativas e uma postura proativa. Não podemos ficar à margem de questões como estas enquanto pessoas são prejudicadas por intimidações digitais. Já passa da hora de o Brasil e seus representantes legais reconhecerem a amplitude e complexidade desta ameaça da qual ninguém pode se dizer livre, sobretudo as mulheres, mais vulneráveis em tantos aspectos num contexto social de machismo e misoginia transbordantes. A Lei Maria da Penha, educativa e preventiva, pioneira e reconhecida em nível mundial, continua a nortear a proteção da mulher no que diz respeito a violência física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. Mas estabelecer novas leis, claras e rigorosas, que possam cobrir as sucessivas modalidades e variações de crime desta natureza, à medida que se apresentam, é um passo fundamental no combate a essa presente forma de violência digital que tem a mulher como alvo. Assim sendo, o Legislativo brasileiro não pode adiar o enfrentamento dos deepfakes. Se o Brasil prestar a devida atenção ao tema, com a seriedade e dedicação que ele exige, pode se revelar um líder nas iniciativas de anteparo à mulher contra os perigos digitais, que de resto afetam a sociedade como um todo.
*Paul Hodel é engenheiro de software, empresário e compositor. Possui experiência no setor privado, destacando-se em tecnologia da informação, desenvolvimento de produtos e inovação tecnológica
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