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Opinião | Prática abusiva: ‘aluguel aplicado’

O artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor, constitui direito básico do consumidor à facilitação de sua defesa e essa garantia visa proteger a parte mais fraca da relação de consumo

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convidado
Por Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser

Atualmente, temos visto a prática comercial abusiva consistente na forma como são comercializadas muitas unidades habitacionais, mediante contratos denominados de “aluguel aplicado”.

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Em outras palavras, a prática consiste em seduzir compradores, que não tenham capacidade financeira para pagar uma “entrada”, que permita financiar o saldo devedor, com a ilusão de que parcelas pagas, à título de aluguel, no final de trinta meses, seriam computadas como se fosse a entrada e se poderia buscar o financiamento bancário para viabilizar a compra junto às incorporadoras.

O abuso se verifica, em regra, no preço excessivo adotado nos chamados “contratos de aluguel aplicado”, cujas tabelas têm diferença superior a 60% (sessenta por cento), quando comparado com o valor das locações convencionais.

Além disso, verificam-se cláusulas abusivas, por estabelecerem obrigações excessivamente onerosas aos compradores, considerando-se circunstâncias peculiares ao caso, em razão do índice de correção monetária e do perfil dos compradores dos imóveis, o que acarreta desvantagem excessiva. Com isso, produz-se um aumento extraordinário do saldo devedor, diante da aplicação do índice de correção monetária inadequado mais juros remuneratórios de um por cento ao mês, desde a posse do imóvel.

As vítimas são, na verdade, “compradores” e não “locatários” e os índices de correção monetária são inadequados.

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O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, dispõe que “a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios...I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo...”.

O artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor, constitui direito básico do consumidor à facilitação de sua defesa e essa garantia visa proteger a parte mais fraca da relação de consumo.

A norma é baseada no princípio da vulnerabilidade que é inerente ao consumidor na relação de consumo, razão pela qual é cabível a inversão do ônus da prova.

Outrossim, o artigo 6º, inciso V do Código de Defesa do Consumidor garante o direito do consumidor em requerer a revisão contratual, em razão de onerosidade excessiva, podendo haver a modificação e a cooperação para readaptação do contrato, com base no princípio da boa-fé e do equilíbrio (artigo , inciso III, do CDC), da vulnerabilidade do consumidor (artigo 4º, inciso I, do CDC) e do princípio constitucional máximo da isonomia (artigo 5º, caput, da Constituição Federal).

Desta forma, é possível engendrar que tal revisão contratual busca reestabelecer o equilíbrio contratual, matéria pautada ainda pelo artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor[1].

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Desta forma, as cláusulas abusivas tornam-se passíveis de nulidade respeitando o princípio da vulnerabilidade, prevendo também o afastamento de uma cláusula abusiva, ambígua ou confusa, sendo que a interpretação do contrato deve ser sempre em favor do consumidor, como versado pelo artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor[2].

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Pode-se concluir, então, que a relação contratual corroborada de cláusulas abusivas, só tem seu equilíbrio reestabelecido quando houver a revisão contratual ou modificação do contrato, objetivando a equidade e a justiça quanto ao consumidor, que se mostra a parte mais frágil da relação contratual. Sendo a modificação contratual, a correção de um vício temporal, o qual lesiona ao tempo da formação do pacto obrigacional, na ocorrência de cláusulas abusivas anteriores à formação do contrato. Já a revisão contratual, decorre da onerosidade excessiva e superveniente à formação do contrato.

O equilíbrio contratual é de extrema necessidade, pois assegura a efetividade e a utilidade do vínculo obrigacional, assegurado ainda pelos artigos 317 e 478 do Código Civil. Quando as cláusulas limitativas dos contratos não estiverem de acordo com o estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, não só deverão ser interpretadas em favor do consumidor, mas, também, consideradas nulas de pleno direito por não obedecerem ao determinado pelas normas protetivas do consumidor e, por conseguinte, colocarem o consumidor em desvantagem excessiva. Não é demais lembrar que o artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor[3], determina a nulidade de pleno direito das cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.

E nos termos do artigo do artigo 51, § 1º, I e II, do Código de Defesa do Consumidor, é exagerada a vantagem que ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico consumerista e que restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual.

Ademais, não convence o argumento de que deve prevalecer a autonomia da vontade e/ou a liberdade contratual simplesmente pelo instrumento celebrado entre as partes. Se uma cláusula contratual é abusiva, o judiciário, ao ser provocado, deve corrigir as ilegalidades existentes, podendo fazê-lo inclusive de ofício.

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A abusividade é evidente, trazendo à margem uma realidade injusta, que tende a afastar por completo a boa-fé objetiva determinada pelo Código de Defesa do Consumidor.

Nesse sentido, ao discorrer sobre o tema, CLÁUDIA LIMA MARQUES[4] ainda nos ensina que:

“Boa-fé significa aqui um nível mínimo e objetivo de cuidados, de respeito e de tratamento leal com a pessoa do parceiro contratual e seus dependentes. Este patamar de lealdade, cooperação, informação e cuidados com o patrimônio e a pessoa do consumidor é imposto por norma legal, tendo em vista a aversão do direito ao abuso e aos atos abusivos praticados pelo contratante mais forte, o fornecedor, com base na liberdade assegurada pelo princípio da autonomia privada”

Nem mesmo convence a alegação de risco ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, posto que não há qualquer impedimento à suspensão ou cancelamento quando precedido da devida notificação e no prazo estipulado legalmente.

Como decorrência da natureza de compra e venda dos contratos celebrados, não poderia ser afastado também o direito à indenização por benfeitorias realizadas.

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Cabe ressaltar que a inadequação do IGPM para os contratos de financiamento de imóveis constitui uma opção abusiva, em desconformidade com boas práticas de mercado. Os índices de correção monetária ao longo da construção é o INCC e após a entrega dos imóveis, os índices de correção são outros, como a TR ou INPC.

Por fim, é importante reconhecer o direito de o compromissário, mesmo inadimplente, obter a devolução das parcelas, que é mera consequência e reflexo da resolução, inclusive, sob pena de ofensa à norma prevista pelo artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe serem nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das parcelas pagas em benefício do credor em contratos de compra e venda resolvidos em razão de inadimplemento.

A jurisprudência consagrou o entendimento de que ao comprador, mesmo inadimplente, e dissolvido o contrato, assiste direito à devolução das parcelas pagas, apenas que descontado percentual suficiente para o pagamento das perdas e danos e despesas administrativas, aí incluído o valor relativo à taxa de ocupação pelo desfrute do imóvel, nos termos da Súmula 1, editada pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a qual dispõe que “o compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem”.

Além disso, conforme inteligência da Súmula nº 2 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, “a devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para a aquisição”.

Toda essa orientação ficou sedimentada no enunciado da Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça, ou seja, “na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento”.

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A retenção do valor pela construtora, por rescisão do contrato, deve ocorrer no percentual de 10% (dez por cento), quando a culpa da rescisão for atribuída à construtora, pelo uso de índice de correção monetária inadequado.

Daí que estamos diante de transgressão às disposições basilares estabelecidas no diploma consumerista e na legislação civil sobre os contratos.

[1]Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(...)

§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:

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I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;

II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.

§ 2º A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.

§ 3º (Vetado).

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§ 4.º É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.

[2]Artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor: As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

[3]“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;”

[4]“Expectativas Legítimas dos Consumidores nos Planos e Seguros Privados de Saúde e os Atuais Projetos de Lei”, in Revista de Direito do Consumidor, out/dez. 1996, p.74.

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica

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Foto do autor Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser
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Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser
Procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo e associada do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD. Foto: MPD/Divulgação
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As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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