"Se você não está pagando pelo produto, você é o produto" -- talvez você já tenha escutado essa frase em algum lugar várias vezes. Artigos, documentários, podcasts e outros conteúdos que falam sobre privacidade e segurança costumam usá-la como ferramenta didática para esclarecer a importância da proteção de dados pessoais.
Afinal, ninguém quer ser um produto, certo? Ainda que a autoria da frase seja, por vezes, atribuída a um tuíte de 2010, o argumento que a sustenta é de muito antes. O próprio autor da publicação, em 2021, complementa a citação com um link de um artigo que traça uma espécie de histórico da frase.
Segundo as informações apuradas pelo "Quote Investigador", em 1973, dizia-se que o produto da televisão era, na verdade, o telespectador. Isso faz referência, claro, ao uso publicitário das transmissões, que perpassa desde a venda de produtos até ideais sociais ou políticos.
Hoje, 50 anos depois, a questão é ainda mais complexa. Na internet, o "produto", que antes era o telespectador, passou a ser o usuário e, agora, as ações publicitárias ganharam um contorno completamente diferente, cada vez mais precisas em relação ao comportamento e preferências de cada pessoa, ao invés de um grupo demográfico.
Se para anunciantes da televisão era importante saber qual grupo demográfico assiste ao jornal das 20h, hoje em dia é possível saber exatamente o comportamento de cada pessoa ou grupo. Ao invés de anúncios gerais para grupos que podem não interessar uma parcela, o direcionamento de anúncios é extremamente personalizado.
Isso acontece porque as empresas direcionam seus esforços para a coleta, tratamento, compreensão e estudo dos dados dos consumidores. Empresas voltadas para o público feminino jovem, por exemplo, estão estudando cada vez mais as preferências desse grupo, a partir das informações e dados fornecidos pela internet.
E, indo além, nem sempre a empresa que capta esses dados é quem usa, podendo ser vendidos sem que o proprietário das informações sequer saiba. Essa ação foi identificada em aplicativos de controle menstrual, que captavam e repassavam esses dados, mesmo sendo uma prática contrária à legislação vigente. Isso significa que clínicas de fertilidade, por exemplo, poderiam comprar informações pessoais das pessoas que usavam esse aplicativo.
Em um caso recente, dias após sofrer um aborto espontâneo, em um momento de luto, uma mulher recebeu, pelo WhatsApp um disparo publicitário de um laboratório. Nele, a empresa oferecia o serviço de congelamento do cordão umbilical. Ela não havia divulgado que estava grávida e nem pesquisado por esse tipo de serviço -- esses dados provavelmente foram adquiridos de terceiros, como o laboratório onde ela realizou o teste,
Mas, quais as chances de isso realmente acontecer só por usar um aplicativo gratuito? Bom, primeiro, cabe esclarecer que não seria a primeira vez. O próprio Facebook recebia informações íntimas de milhares de pessoas. E para que eram usados? É difícil saber, mas as possibilidades são infinitas.
Existem ainda outros usos mais sérios, como o escândalo também do Facebook com a empresa Cambridge Analytics. Os dados dos usuários seriam usados para mapear o seu comportamento e buscar influenciá-los politicamente.
Informações sobre preferências pessoais, localização, interação e outras ações desempenhadas na rede social foram usadas para construir perfis detalhados. A partir deles, a empresa, especializada em marketing político, realizava disparos publicitários em nome do então candidato Donald Trump.
Uma preocupação de pesquisadores, por exemplo, é que dados médicos e históricos de compra em farmácias sejam usados como base para aumentar tarifas de planos de saúde. Outra possibilidade é que os padrões de consumo se tornem justificativa para negativa ou permissão de acesso ao crédito em bancos.
O que fazer então? Parar de usar aplicativos e redes sociais? Não necessariamente, mas precisamos fazer alguma coisa. Historicamente ainda vivemos uma fase primária dessa coleta e uso de dados, o que significa que os impactos podem ser minimizados e talvez até controlados, evitando que se tornem ainda mais graves.
O principal caminho seria cumprir com os direitos já assegurados na Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD. A legislação prevê a proteção de dados pessoais e dados pessoais sensíveis como fundamentais para garantir a liberdade e a privacidade de cada pessoa, além do livre desenvolvimento da personalidade.
Mas, até que essa proteção seja mais efetiva, existem cuidados básicos que os usuários de redes sociais e aplicativos podem tomar para se proteger. Como, por exemplo, escolher bem quais informações devem ser compartilhadas e quais aplicativos baixar. Em alguns casos, você sequer precisa inserir suas informações ativamente, a aplicação está coletando tudo em segundo plano enquanto você usa o seu aparelho, e isso deve ser motivo de preocupação para você e para todos os titulares de dados.
Como dito antes, as possibilidades no uso de dados pessoais são muitas. Contudo, o caminho para evitar que cenários como esses se repitam ou sejam agravados é entender a relevância dos dados pessoais e conscientizar cada vez mais os titulares de dados acerca dos seus direitos, bem como as autoridades, como a ANPD terem um papel cada vez mais proativo acerca da fiscalização em relação a forma como os agentes de tratamento fazem uso dos dados pessoais de milhares de titulares no Brasil.
*Maria Cecília Oliveira Gomes, doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da USP, professora do Data Privacy Brasil, professora convidada da USP, PUCRS e de outras instituições de ensino. Foi pesquisadora visitante na Data Protection Unit do Council of Europe (CoE) na França. Foi pesquisadora visitante no European Data Protection Supervisor (EDPS) na Bélgica. Pós-graduada em Propriedade Intelectual e Novos Negócios pela Fundação Getúlio Vargas (FGV)
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