Ives Gandra da Silva Martins continua a surpreender com sua produção bibliográfica e sua pregação ética. Completará noventa anos em fevereiro de 2025 e preserva a juventude intelectual e idealista que o levou a exercer múltiplas atividades. Integra a família de São Fernando de Lisboa, que se tornou mais conhecido como Santo Antônio de Pádua, o que talvez explique o dom da múltipla ubiquidade que o caracteriza. Está em todos os espaços. Posiciona-se. Não foge à luta. E escreve, publica, dissemina o seu credo.
Seu livro “Quatro diálogos” é um verdadeiro compêndio ético. Fisicamente pequenino e singelo, contém ensinamentos perenes. E, lamentavelmente, em evidente declínio. É que a sociedade optou pelo acessório, em detrimento do essencial. Valores são trocados por falácias e insignificâncias. Aquilo que vale realmente a pena é relegado em favor do que nada acrescenta à perfectibilidade humana.
Vale a pena deter-se em cada um dos decálogos, todos eles inspiradores. Cada elemento propicia uma reflexão consistente e necessária para uma revisão de vida. O primeiro é o Decálogo da Convivência. Como conviver com a multiplicidade de caracteres dos humanos? A receita de Ives: 1. Buscar a paz interior; 2. Viver o espírito de serviço; 3. Fazer tudo com alegria; 4. Agir com paciência; 5. Manter a serenidade nas conversas; 6. Procurar não julgar intenções; 7. Mostrar afabilidade com as pessoas; 8. Passar segurança no que faz; 9. Ter coragem de enfrentar o erro, preservando o errado; 10. Ser humilde.
Instigante o Decálogo do “Não”. É fácil segui-lo? Evidentemente, não. Mas é preciso tentar e insistir, para que ele valha na rotina diuturna de nossa vida tão requisitada: 1. Não reclamar; 2. Não falar mal dos outros; 3. Não falar bem de si mesmo; 4. Não perder a calma; 5. Não se apegar às coisas; 6. Não mentir; 7. Não perder tempo com coisas inúteis; 8. Não desistir perante as dificuldades; 9. Não se importar com críticas, senão para melhorar; 10. Não fazer nada de que se possa envergonhar.
O terceiro Decálogo é o do trabalho ordinário, cuja observância é o testemunho cabal do segredo de Ives Gandra para vencer todos os desafios que sua febril atividade enfrenta. 1. Fazer, com rapidez, o que se pede e com o máximo de pontualidade; 2. Começar sempre pelo mais difícil; 3. Não se aborrecer com os defeitos dos outros; 4. Aborrecer-se com os próprios defeitos; 5. Não ficar infeliz com a felicidade dos outros; 6. Cuidar apenas do que lhe diz respeito; 7. Não perder tempo com ressentimentos, suposições ou imaginações; 8. Não esperar que os outros ajam rigorosamente como gostaria que agissem; 9. Ver sempre o lado positivo das coisas; 10. Pouco se importar com a opinião alheia, a não ser que objetive auxiliar a quem se dirige.
O quarto Decálogo merece tratamento específico. É aquele destinado às carreiras jurídicas. Embora Ives o denomine “Decálogo do Advogado”, serve também para os juízes, promotores, defensores públicos, procuradores, delegatários do serviço extrajudicial, delegados de polícia e toda a gama de profissionais que passou por um bacharelado em Direito.
Algo cada vez mais necessário de se transmitir à juventude, numa era em que só vale a conquista material, sobretudo financeira, e prevalece o egoísmo, o individualismo, o narcisismo, todos esses “ismos” que decepcionam os mais sensíveis e que precisam ser corajosamente enfrentados.
Interessante exercício seria propor a um grupo interessado em aprimoramento pessoal, a leitura dos Decálogos de Ives e solicitar de cada qual fizesse comentários a respeito, baseando-se no seu próprio comportamento. Aquilo que um dia se chamou “Educação moral e cívica”, por contaminar-se ideologicamente, desapareceu das salas de aula. Também não são objeto de disputa por participação, as Escolas Dominicais, os Catecismos, os cursos de formação do caráter.
Aqueles que se preocupam com o futuro ético da espécie humana deveriam assumir o protagonismo de trazer à discussão textos de consistência como os de Ives Gandra da Silva Martins. O seu labor incansável na messe em que moureja há mais de setenta anos o credencia a ser uma voz a ser ouvida com respeito e consideração.
Quanto a nós, o que estamos fazendo para trazer às novas gerações o compromisso com o contínuo aprimoramento da espécie, rumo à vocação de perfectibilidade que deve ser nosso guia e roteiro?
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