O juiz aposentado José Eduardo Franco dos Reis, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que se apresentava como descendente da nobreza britânica e viveu 45 anos sob a falsa identidade de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, se comportava como se fosse de fato um membro da realeza do Reino Unido. Segundo pessoas que conviveram com o magistrado ouvidas pelo Estadão, ele tinha por hábito beber chá pontualmente às 17 horas e costumava ser visto com blazers de tweed.
Por inúmeras vezes, o nome incomum despertou interesse de quem despachava ou trabalhava com o magistrado, sem que as pessoas pudessem imaginar que a identidade era falsa. Quando questionado, dizia ser filho de pais britânicos.
Um advogado experiente ouvido reservadamente pela reportagem relembra que despachou com o magistrado em 2008. Na época, ele trabalhava da Vara de Família do Ipiranga. “Era de uma empáfia incrível”, relembre o causídico.
Um desembargador que o conheceu bem é mais direto: “Habilidoso e charlatão”. Um promotor de Justiça fez piada ao relembrar a dificuldade que teve para memorizar o nome completo do magistrado.

Depois que o caso veio a público, colegas começaram a circular impressões sobre o juiz em grupos de mensagens. Segundo os relatos, Edward dizia que usava o metrô para se deslocar ao Fórum João Mendes porque estava acostumado com o transporte público na Inglaterra. Também afirmou que fazia tratamento fonoaudiológico para diminuir o sotaque britânico.
“Quando o príncipe da Inglaterra se casou, ele tirou férias na mesma época. A gente achava que ele tinha ido para o casamento mas ele falava que não podia contar nada”, relatou um ex-colega em um desses grupos de magistrados.
O magistrado foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo por uso de documento falso e falsidade ideológica. A denúncia assinada pelo pelo promotor de Justiça Maurício Salvadori foi recebida pela 29.ª Vara Criminal da Capital, mas ainda não foi julgada. Segundo o MP, Edward Wickfield é na verdade José Eduardo Franco dos Reis, um cidadão de Águas da Prata, no interior de São Paulo, filho de José dos Reis e Vitalina Franco dos Reis.
A persona teria sido assumida pelo magistrado pouco antes da graduação. Ele se formou na prestigiosa Faculdade de Direito da USP, no Largo do São Francisco. Depois disso, segundo o Ministério Público, prestou concurso e atuou décadas como juiz sob a identidade falsa. O magistrado manteve ativa a identidade brasileira, de Eduardo, que renovava periodicamente. Esse foi o fator determinante para o Ministério Público decidir denunciá-lo.

Leia também
A fraude foi descoberta em outubro de 2024, quando ele esteve no Poupatempo da Sé para pedir a segunda vida da carteira de identidade. Foram encontrados dois registros diferentes associados às mesmas digitais. A divergência só foi percebida porque os registros do Instituto de Identificação Ricardo Gumblenton Daunt (IIRGD) haviam sido digitalizados.
De acordo com a denúncia do Ministério Público de São Paulo, no dia 19 de setembro de 1980, José Eduardo teria comparecido a um posto de identificação da Polícia Civil e tirado o documento em nome de Edward Wickfield. Para tanto, segundo a Promotoria, apresentou um certificado falso de reservista do Exército, um documento que dizia ser ele servidor do Ministério Público do Trabalho, uma carteira de trabalho e um título de eleitor, todos com o mesmo nome falso. Como na época, as bases de documentos não se comunicavam entre si e os papéis não eram armazenados em sistemas eletrônicos, era fácil, de acordo com o MP, uma falsificação.