Portugal nunca se preocupou com a educação na colônia. A máxima concessão viria com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, em fuga pela invasão napoleônica. Abriu-se então, na capital da Bahia, uma escola cujo nome "Colégio Médico-Cirúrgico" aceitava como alunos quem soubesse ler e escrever.
Era um contraste com a metrópole, onde desde o início do século XIV se manifestara o interesse pelos estudos superiores. Já floresciam na Itália as Universidades de Pádua e Bolonha, na França a de Lutécia, na Espanha as de Valência e Salamanca. A Universidade de Coimbra data de 1307.
Na Bahia, lecionavam luminares como Pirajá da Silva em Parasitologia e Medicina Tropical, Clementino Fraga em Clínica Médica e Oscar Freire se encarregava da Medicina Legal.
Foi ele quem consolidou a obra pioneira de Nina Rodrigues e, por sua vez, também exerceu o pioneirismo em inúmeras áreas. Modernizou a técnica das necropsias e da execução das necroscopias, introduziu métodos mais aperfeiçoados para o diagnóstico de lesões histopatológicas, sistematizou o museu de peças anatômicas reveladoras de lesões de origem criminal. Mais ainda, ampliou as coleções de todos os tipos de armas utilizadas pelos delinquentes e iniciou as pesquisas sobre a fauna cadavérica no Brasil.
Era um orador primoroso, argumentador fulgurante, analista ímpar. Um idealista que não media esforços para ser prestante e útil, animado sempre das mais nobres inspirações. Os contemporâneos o consideravam uma das mais brilhantes estrelas da verdadeira constelação de mestres que brilharam no firmamento cultural da antiga capital do Brasil.
É, indubitavelmente, a maior figura da Escola Baiana de Medicina Legal. Além de profundo conhecedor de Criminologia, era notável cultor da Ciência Jurídica. Especializou-se na normatividade do ensino, já então prolixas e confusas.
Foi por causa de sua fama que São Paulo quis trazê-lo para a Faculdade de Medicina, em 1917, que então funcionava num casarão da rua Brigadeiro Tobias. A ideia foi de Arnaldo Vieira de Carvalho, amigo do engenheiro Theodoro Sampaio e o convite formal foi aceito por Oscar Freire.
Ele chegou a São Paulo em fevereiro de 1918, foi recebido na Estação por A. de Almeida Prado, na qualidade de representante da Diretoria da Faculdade. A 18 de abril, no imponente edifício onde funcionava o Instituto de Higiene, proferiu sua aula inaugural. A ela compareceram as grandes figuras do mundo médico de então.
Ocorre que aquele que tanto se dedicou à formação dos mais jovens, esqueceu-se de cuidar de sua saúde. Os que assistiram à sua morte, depois de longa agonia, relatam lição preciosa de resignação evangélica, de nobreza, de coragem e humildade. Chamou todos os seus familiares, amigos e discípulos e de cada um se despediu com uma palavra amiga, com um conselho e solicitou àqueles a quem, porventura houvesse magoado, que os perdoassem. Nenhum rancor jamais albergou em seu coração.
Faleceu às 22 horas e 50 minutos de 11 de janeiro de 1923. Seu corpo foi levado à Faculdade de Medicina, embalsamado pelos professores Alfonso Bovero e Flamínio Fávero. Exposto à visitação pública no salão nobre do antigo Jardim da Infância, anexo à Escola Normal da Praça da República, atual sede da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Houve memorável sessão em homenagem à sua memória e seus restos mortais voltaram à Bahia.
Acompanharam-no, nessa última viagem, como representantes da Faculdade de Medicina de São Paulo, os professores Celestino Bourroul e Almeida Júnior.
Oscar Freire de Carvalho, mais comumente conhecido como Oscar Freire, nasceu em Salvador, em 3 de outubro de 1882 e nunca saiu de seu país. Doutorou-se ali em 1900 e sua tese de Doutorado era assunto original à época: "Etiologia das Formas Concretas da Religiosidade do Norte do Brasil". Já durante a época estudantil escrevera "Do conceito de aborto criminoso", "Influência da Religião na Criminalidade Brasileira" e "Das Relações das Religiões e do Crime no Brasil".
Não chegou a clinicar, nem se dedicou à cirurgia, pois sua vocação era o ensino. Já se servia de método pedagógico até hoje ignorado por grande parte dos docentes: menos memória, mais experiência adquirida na direta observação dos fatos.
Nome de charmosa rua da Capital Paulista, seu nome é lembrado múltiplas vezes, sem que os que o pronunciam tenham noção de quem foi Oscar Freire.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras
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