Talvez não seja de conhecimento de todos, mas, no ordenamento jurídico brasileiro, o direito de propriedade não é absoluto e encontra limitações, por exemplo, nos direitos de vizinhança e nas normas condominiais, sejam eles previstos em lei ou em instrumentos privados.
Na vida em condomínio, o exercício do direito individual de propriedade pode representar riscos à coletividade, em relação a segurança, saúde e sossego. É possível também caracterizar como ilícito ou imoral o que, em última análise, pode configurar comportamento antissocial.
Na esfera cível, para coibir esse tipo de conduta, o artigo 1.337 do Código Civil dispõe (e a convenção de condomínio normalmente replica) que o condômino que não cumprir reiteradamente os seus deveres com o condomínio pode, mediante deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser constrangido ao pagamento de multa correspondente a até dez vezes o valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, de acordo com a gravidade das faltas e a reiteração da prática.
A multa elevada tem caráter coercitivo para obrigar o condômino a seguir regras que permitam a convivência pacífica com os demais moradores. A penalidade pecuniária, porém, pode não alcançar os efeitos desejados. Em alguns casos, o condômino antissocial continuará prejudicando a convivência com os demais, não importam as multas que vierem a ser cobradas.
Nesse cenário, a doutrina consolidou, por meio do Enunciado 508 da V Jornada de Direito Civil, realizada em 2012, o entendimento de que, constatado que a sanção pecuniária se mostrou ineficaz, a garantia fundamental da função social da propriedade e a vedação ao abuso do direito justificam a exclusão do condômino antissocial do condomínio. A medida se dará por meio de assembleia que delibere a propositura e ação judicial com esse objetivo, asseguradas todas as garantias inerentes ao devido processo legal e à ampla defesa.
O condômino expulso não perde a propriedade do imóvel, mas sim o direito ao convívio no espaço. Em outras palavras, o proprietário é obrigado a desocupar o imóvel por falta de comportamento social adequado para viver no condomínio, mas permanece com todos os seus demais direitos intrínsecos à propriedade - gozar e dispor da coisa - ativos. Será aplicada uma sanção indireta de necessidade de alienação ou locação do imóvel.
A possibilidade de afastamento do condômino antissocial, portanto, existe. Persiste, porém, uma lacuna legislativa, doutrinária e jurisprudencial relativa à possibilidade de expulsão de condômino por prática antissocial se não for demonstrada que a conduta é reincidente (não basta que o condômino seja antissocial, é necessário que a conduta seja reiterada). Perpetua-se, assim, o comportamento antissocial (e, por vezes, racista) sem que haja uma punição severa ou, principalmente, eficaz.
É nessa zona cinzenta, sem regulamento até o momento, que estão diversas situações envolvendo racismo. A vítima é obrigada a continuar convivendo com o agressor, mesmo que o ilícito já esteja bem caracterizado tanto do ponto de vista cível quanto criminal, para fins de qualificação da prática reiterada do comportamento. Isso gera danos para muito além dos corredores do edifício - atinge toda a sociedade.
A compreensão e definição do racismo é a primeira etapa para possibilitar a sua prevenção e, em última instância, a punição de quem o pratica. Trata-se de uma maneira sistêmica de diferenciar sujeitos que tem a raça como elemento central, se desdobrando em condutas, conscientes ou não, que atribuem privilégios a determinados indivíduos em detrimento de outros, a depender do grupo racial ao qual pertença.
Essa discriminação racial pode ser direta ou indireta, positiva ou negativa:
- Direta - repúdio ostensivo;
- Indireta - neutralidade em relação aos assuntos que afetem determinado grupo;
- Positiva - atribuição de tratamento diferenciado para promover circunstâncias de igualdade; e
- Negativa - atribuição de desvantagens e prejuízos a determinado grupo.
Todas as condutas acima, com exceção da positiva, podem gerar tanto a obrigação de reparação na esfera cível quanto fundamentar os procedimentos de exclusão do condômino racista e antissocial, bem como são criminalizadas e, portanto, tipificadas no Código Penal como injúria racial.
Como o enfrentamento dos casos de racismo pode gerar maiores danos ao condomínio do que a sua prevenção, algumas medidas podem ser tomadas para evitar que as manifestações, produções e reproduções dessa conduta ocorram dentro das suas dependências e afetem o bem-estar comum dos condôminos.
Algumas boas formas de se implementar essas medidas são:
- cumprir obrigação legal de exibir placas de proibição de tratamento discriminatório em elevadores;
- afixar avisos educativos nas dependências comuns;
- promover palestras de letramento racial aos condôminos, funcionários e colaboradores;
- abordar o tema em assembleias, sempre que oportuno;
- criar canal de denúncias para vítimas e testemunhas de práticas de cunho racista; e
- fornecer treinamento antirracista para funcionários e colaboradores, entre outras tantas.
A disseminação desses conceitos e políticas antirracistas, bem como a participação de todos os condôminos na conscientização contra o racismo, é fundamental para preservar a convivência harmônica entre vizinhos e mitigar, consequentemente, o risco de posturas antissociais.
Para além dos portões do edifício, fica o dever de casa para o setor jurídico repensar se a possibilidade de exclusão do condômino antissocial é suficiente para garantia fundamental da função social da propriedade e da vedação ao abuso do direito.
Cabe também refletir sobre a exigência de reincidência para fins de caracterização da conduta antissocial passível de expulsão de condômino, quando a prática antissocial for intolerável - como o racismo.
*Bruno Costa, sócio da área de Imobiliário do Machado Meyer Advogados
*Luiza Salles, advogada da área de Imobiliário do Machado Meyer Advogados
*Ana Carolina Lourenço, advogada da área de Contencioso do Machado Meyer Advogados
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