A recusa terapêutica é um direito do paciente consciente e capaz para o exercício dos atos da vida civil sendo corolário da tutela do corpo e da própria saúde, aspectos indissociáveis dos direitos da personalidade.
As dificuldades passam a existir quando o paciente não possa livremente manifestar sua vontade, ora por um estado de inconsciência, ora por ser portador de doença que reduza ou suprima as faculdades cognitivas[1], além da situação do menor, púbere e impúbere, e dos seres existentes no ventre materno. A mesma autonomia para a recusa terapêutica pode ser-lhes deferida?
Ao se considerar o grande contexto das pessoas maiores e capazes, em estado de consciência plena, a recusa terapêutica pode ser uma opção de clara resposta afirmativa, considerando os altos índices de mistanásia no Brasil (ausência de políticas públicas que garantam a sobrevivência de grupos vulneráveis), país de elevado índice de produto interno bruto e, paradoxalmente, um dos países de maior desigualdade social do mundo?
Da mesma forma, considerando referido grupo de pessoas maiores, capazes e conscientes, também haverá de ser afirmativa a recusa terapêutica ampla, como direito da personalidade, irrefutável, quando não há qualquer política pública de âmbito nacional em matéria de cuidados paliativos?
No afã de serem apresentadas respostas apriorísticas com base em direito constitucional, impõe-se posicionar o aplicador da norma, e o profissional da saúde, nas bases brasileiras, e o grande impacto nas relações sociais que essas soluções produzirão, já que a norma não incidirá sobre a classe social A ou B, mas em todos os níveis sociais.
Importante o registro de Ferreira sobre a legislação brasileira nesse assunto:
O Estado de São Paulo no ano de 1999 foi o primeiro estado brasileiro a legislar sobre temas relacionados à antecipação da morte. A chamada Lei Mario Covas permite a recusa de tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida em seu artigo 2º, inciso XXIIII. No mesmo sentido, o Código Civil brasileiro de 2002, expressa em seu artigo 15 que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de morte, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. No âmbito da autorregulamentação, a resolução n. 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina prevê a limitação ou suspensão de procedimentos e terapias que busquem prolongar a vida de paciente em fase terminal. Para isso, o consentimento esclarecido deve ser observado e também informações sobre outros tratamentos e cuidados paliativos. Na ocasião, o Ministério Público Federal requereu por meio de liminar a suspensão da resolução em razão da prática não encontrar amaro na legislação brasileira. A suspensão da resolução foi mantida até dezembro de 2010, quando nova decisão judicial derrubou a liminar suspensiva. No julgamento da ação, o Ministério Público mudou de opinião e o juiz acatou os pareceres dos profissionais da saúde. Prevaleceu na decisão o exercício da autonomia do paciente em estado de morte iminente. [2]
Houve caso de grande repercussão de doença degenerativa e finitude humana nos Estados Unidos da jovem Karen, que estava em estado de inconsciência, com respiração mantida de forma artificial e prognóstico de estado vegetativo permanente, segundo a junta médica. Dentro desse quadro, seus pais manifestaram o desejo que a morte tivesse seu curso regular com o desligamento de todos os aparelhos, o que foi rechaçado pela junta médica e travada intensa luta judicial e grandes debates religiosos, éticos, sociais e midiáticos acerca desse fato, que se iniciou em 1975, segundo os quais foram apontados os questionamentos, que ainda são pertinentes e atuais, e ainda são polêmicos não só no Brasil, mas em diversos países do mundo.
(...) A eutanásia é pauta para calorosos debates. Em meio a tudo isso, surgem questões como estas: 1. O paciente tem direito de recusar a submeter-se a determinados tratamentos considerados “extraordinários”? 2. Em caso de um paciente incapaz, quem tem o direito de responder por ele? 3. Em caso de desacordo entre médicos e familiares, os direitos de quem prevalece? 4. É aconselhável reforçar juridicamente o direito dos familiares? 5. É aconselhável recorrer aos tribunais como a de Karen Ann Quinlan?[3]
No Brasil vigora o artigo 56 do Código de Ética Médica de 1988, cujo teor se insere nos termos: “é vedado ao médico: desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.” (grifo nosso)
Diante da fronteira com a eutanásia, e não raro da própria distanásia, Coelho se posiciona favoravelmente à recusa de tratamentos de saúde assinalando que,
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado excesso terapêutico, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objetivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte.[4]
A recusa terapêutica está diretamente relacionada aos limites da autodeterminação[5] do paciente, como regra, pessoas maiores e com capacidade para consentir. Nesse sentido, importante trazer à lume a experiência portuguesa:
Mas não só a ordem pública serve como limite, como pode produzir um efeito positivo tendente a mitigar a concretização da ordem pública internacional ao impor o reconhecimento do consentimento ou dissentimento para recusar um determinado tratamento médico, ainda que cause a morte do paciente. Será o caso de um italiano, residente em Itália, mas internado em Portugal, tendo cá manifestado o seu dissentimento expresso para a alimentação artificial. Neste sentido, em normas de aplicação necessária e imediata, em particular quanto às disposições do Código Penal, estão em causa os limites da autodeterminação. Trata-se de determinar a concretização dos limites dessa autonomia, definidos unilateralmente por cada Estado. No caso português o artigo 5º da Lei n.25/2012 é a expressão desse mesmo limite ao reconhecimento e eficácia de um direito à autodeterminação à luz de um direito estrangeiro. A invocação da excepção de ordem pública internacional portuguesa, assente no princípio do mínimo dano, não vai impedir o reconhecimento da manifestação da autonomia prospectiva, apenas irá considerar ineficaz a manifestação de vontade na parte em que o outorgante pretende a ajuda activa à morte.[6]
Há entendimentos que se fundam na admissão da recusa terapêutica face à nova relação médico-paciente, tendo sido inaugurada a fase do paciente-pessoa, em detrimento da fase paciente-objeto. Crê-se, no entanto, certo exagero desse posicionamento[7], mas, sem sombra de dúvidas, o fortalecimento dos direitos da personalidade, e o novo Código Civil Brasileiro – Lei n. 10.406, de 10-01/22-, têm enfoque maior na pessoa.
Reafirme-se que a norma civil infraconstitucional só se coadunará à Carta Republicana quando o objetivo da recusa do paciente for o resguardo da própria vida, o que se dessume, inclusive, do próprio texto legal: “...submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.” (grifos nossos). Do contrário, a autonomia privada do paciente não seria para tutelar a vida, mas o seu oposto: a finitude humana.
[1] A limitação consentida de tratamento (LCT) constitui uma das políticas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida. Pacientes terminais, em estado vegetativo persistente ou portadores de doenças incuráveis, dolorosas e debilitantes, devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensão e intensidade dos procedimentos que lhe serão aplicados. Têm direito de recusar a obstinação terapêutica. Nesse contexto, a omissão de atuação do profissional de saúde, em atendimento à vontade livre, esclarecida e razoável do paciente ou de seus responsáveis legais, não pode ser considerada crime. Não há, na hipótese, a intenção de provocar o evento morte, mas, sim, de impedir a agonia e o sofrimento inútil. A imposição de tratamento, contra a vontade do paciente e contra o que a equipe médica considera recomendável, viola a autonomia dos indivíduos e dos profissionais. O papel do Direito, nesse particular, deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os cuidados a serem adotados. Não mais. A suspensão da Resolução CFM n. 1805/2006, por decisão judicial, constitui um retrocesso na matéria e impede o exercício de uma autonomia individual protegida constitucionalmente. (GOZZO, Débora, LIGIERA, Wilson Ricardo. Bioética e Direitos Fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva. 2012. P.56).
[2] FERREIRA, Luciano Maia Alves. Eutanásia e Suicídio Assistido. Curitiba: Ed. Appris. 2018. pp.102-103.
[3] PESSINI, Leo; BARCHFONTAINE, Christian. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Ed. Loyola. 2008.p. 508-509.
[4] COELHO, Mário Marcelo. O que a Igreja ensina sobre... São Paulo: Ed.Canção Nova. 5ª edição. 2012.p.124
[5] A jovem escritora Ana Michelle, com tanta sabedoria, nos leva à profunda reflexão a partir de um exemplo por ela vivido quanto aos efeitos orgânicos e psicológicos produzidos por medicamentos de longa duração em cotejo com a qualidade de vida do paciente, ao citar diálogo com amiga que estava sendo submetida a sessões de quimioterapia, transcrevendo, inclusive, o contexto de conversas entre as amigas: “Vocês são loucas de viajar pra tão longe. Meu médico nunca deixaria. Semana passada tinha uma festa de família para ir, mas ele achou melhor não, porque minha imunidade estava baixa e poderia atrasar o tratamento. Imagina só ir pra Europa. Daqui a pouco estarei curada e poderei fazer tudo isso. Eu e Renata ficaríamos o resto do dia inconformadas o quanto os pacientes perdiam o poder de decisão sobre a própria vida por medo médico, da família, do julgamento alheio. E também o quanto ignoravam o significado de tratamento paliativo. Diante do que a medicina oferece hoje, essa cura que ela estava esperando começar a viver não era possível, O médico poderia ter prescrito algo para melhorar a imunidade dela, atrasar a quimioterapia alguns dias, incentivando-a a viver esse momento de comemoração ao lado da família. Seria importante para ela. Seria importante para eles, nós nos perguntávamos em que momento da faculdade o médico deixava de ver o ser humano na sua frente e passava a ver apenas doença e remédio. Era culpa” O consentimento insere-se em um processo de proteção e respeito à dignidade do paciente, marcando a transição do paciente-objeto para paciente-pessoa. Conforme ensina Alexandre Capron, o consentimento teria várias funções, entre elas: (i) Proteger a autonomia do indivíduo; (ii) Proteger o status de ser humano do paciente; (iii) Evitar fraudes ou coação (iv) Encorajar os médicos a considerarem cuidadosamente as decisões do paciente (v) permitir que o paciente tome de forma racional uma decisão eaue do médico? Do sistema? Do paciente que não se posicionava?” (grifos nossos) (SOARES, Ana Michelle. Enquanto eu respirar. Rio de Janeiro: Ed. Sextante. 2019. p.82)
[6] OLIVEIRA, Guilherme de apud LOUREIRO, João, PEREIRA, André Dias e BARBOSA, Carla. Direito da Saúde. Coimbra: Ed. Almedina. 2016.p.317
[7]”O consentimento insere-se em um processo de proteção e respeito à dignidade do paciente, marcando a transição do paciente-objeto para paciente-pessoa. Conforme ensina Alexandra Carpon, o consentimento teria várias funções, entre elas: (i) proteger a autonomia do indivíduo; (ii) proteger o status de ser humano do paciente (iii) evitar fraude ou coação (iv) encorajar os médicos a considerarem cuidadosamente as decisões do paciente (v) permitir que o paciente tome de forma racional uma decisão ; e (vi) envolver o público de maneira geral na medicina.” (SOUZA, Henrique Freire de Oliveria. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro- Editora Espaço Jurídico. 2017.p.64)
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