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Opinião|Reflexões sobre o aborto

Consagra-se, no Brasil, a liberdade religiosa e o caráter laico do Estado. A liberdade religiosa e o Estado laico determinam que as religiões não guiarão o tratamento estatal dispensado a outros direitos fundamentais, que envolvem o direito à autodeterminação, o direito à saúde física e mental, o direito à privacidade, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de orientação sexual e o direito à liberdade no campo da reprodução

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convidado
Por Rogério Tadeu Romano

I – O CRIME DE ABORTO

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Não se pode abdicar do entendimento de que o objeto jurídico do crime de aborto é a preservação da vida humana. Tal se dá, seja por razões científicas e ainda morais, como se lê de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, Parte Especial, 1995, volume I, pág. 80). A preservação da vida começa a partir da implantação do ovo na cavidade uterina.

O Código Penal de 1830 não punia o aborto provocado pela própria mulher, seguindo o exemplo do Código Frances de 1791, que foi abandonado pelo Código de Napoleão. Incriminava aquele Código do Império o aborto se praticado com o consentimento da gestante, com a pena de prisão com o trabalho, por um a cinco anos, pena essa que era dobrada se o aborto se dava com sem o seu consentimento. Por sua vez, o Código Penal de 1890 punia o aborto praticado com ou sem consentimento da gestante, prevendo-se a hipótese de seguir-se a morte da mulher.

Objeto da tutela jurídica é a vida da pessoa em formação. Assim entende-se que o produto da concepção (feto ou embrião) não é pessoa, mas também não é mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno.

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Sujeito ativo do crime de autoaborto (artigo 124 do Código Penal)é a própria mulher grávida. Trata-se de crime próprio. Nas demais hipóteses (aborto consentido e não consentido) o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa.

O objeto material da ação do crime de aborto é o produto da concepção, qualquer que seja o grau de seu desenvolvimento.

Mas a mulher gestante pode ser sujeito passivo do crime quando o aborto é praticado sem o seu consentimento.

O crime de aborto consiste na interrupção da gravidez, destruindo-se o produto da concepção ou provocando-se a morte do feto, sem que se exija a sua expulsão. O crime é, portanto, material, e se consuma com a destruição do óvulo fecundado ou do embrião ou com a morte do feto, sendo indiferente que esta venha a ocorrer após a expulsão, por imaturidade. Na lição de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, Parte Especial, 7ª edição, 1983, pág. 114) é irrelevante o lapso de tempo mais ou menos longo em que sobrevém a morte, pressuposta a relação de causalidade.

Todavia se o feto é expulso com vida, independente de sua capacidade de viver ou da expectativa de vida, haverá crime de homicídio, se ocorrer a conduta do artigo 121 do Código Penal.

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Se nova ação é praticada sobre o feto, o crime será de homicídio, que absorve, por consunção, o aborto. Poderá esse homicídio ser praticado por omissão. Se em consequência de manobras abortivas o feto nasce e permanece vivo por circunstâncias alheias à vontade do agente, haverá tentativa. Não haverá, no entanto, o homicídio se se trata de feto inteiramente imaturo, ao qual se elimina o sopro de vida que apresenta.

A realização repetitiva de abortos em mulheres é crime continuado.

O crime de aborto, em geral, é praticado por meios mecânicos diretos ou indiretos , mas pode ser praticado por ingestão de substâncias abortivas.

O crime de aborto é praticado a título de dolo que consiste na vontade livre e consciente de interromper a gravidez, matando o produto da concepção ou na aceitação de provocar esse resultado.

De toda sorte o exame de corpo de delito é indispensável para a comprovação da materialidade do crime.

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De outro lado, são conhecidos os chamados métodos contraceptivos ( HTTP://GUIA.BIO.BR):

“Os métodos contraceptivos são utilizados por pessoas que têm vida sexual ativa e querem evitar uma gravidez. Além disso, a camisinha, por exemplo, protege de doenças sexualmente transmissíveis (DST).

Há vários tipos de métodos contraceptivos disponíveis no mercado, como a camisinha masculina, camisinha feminina, o DIU (dispositivo intrauterino), contracepção hormonal injetável, contracepção hormonal oral (pílula anticoncepcional), implantes, espermicida, abstinência periódica, contracepção cirúrgica, contracepção de emergência, entre outros.

Dentre tantos métodos disponíveis, torna-se necessário o auxílio de um médico para definir a escolha de qual método utilizar, pois ele levará em consideração a idade da pessoa, a frequência com que mantém as relações sexuais, necessidades reprodutivas, saúde, etc.

Dentre os métodos contraceptivos há os que são reversíveis e os que são irreversíveis. Os métodos reversíveis, também chamados de temporários, são aqueles que ao deixarem de ser utilizados, permitirão uma gravidez. Os métodos irreversíveis, também conhecidos como definitivos, são aqueles que exigem uma intervenção cirúrgica, como vasectomia, para os homens; e laqueadura tubária, para as mulheres.”

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II – AS MODALIDADES DE ABORTO

São três as modalidades de aborto: autoaborto (artigo 124, primeira parte do CP) quando o aborto é praticado em si mesmo; aborto consentido pela gestante (artigo 124, segunda parte e 126); aborto sem o consentimento da gestante (artigo 125 do CP).

O autoaborto consiste em praticar o crime em si mesmo.

No aborto praticado com o consentimento da gestante, há duplo crime: o daquele que praticou o aborto e o da gestante que consente em que outrem lhe provoque e como tal é crime plurissubjetivo, em que os agentes praticam crimes autônomos. A rigor, entende-se que a mulher incide em cumplicidade, aplicando-se o artigo 29 do Código Penal. Já quem concorre na ação, instigando a mulher gravida, indicando quem praticará o aborto, pagando a esse, conduzindo a gestante, por exemplo, praticará sob forma de participação o crime previsto no artigo 124 do Código Penal. Por sua vez, quem provoca o aborto com o consentimento da gestante, pratica o crime do artigo 126 do Código Penal.

Mas exige-se que o consentimento para o aborto seja válido, que tenha sido livremente obtido.

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A forma mais grave do crime de aborto é aquele praticado sem o consentimento da gestante. Se for praticado por médico, será sempre aplicável pena em função de abuso de profissão.

Desconhece o ordenamento penal brasileiro o aborto por motivo de honra, que é relativa aos bons costumes em matéria sexual. Sob o Código Penal de 1969 (artigo 127) entendia-se aplicável às mulheres solteiras, podendo ocorrer em relação às mulheres casadas ou viúvas. O tipo subjetivo exigia especial fim de agir (dolo específico), que é elemento subjetivo do injusto e deveria a ação ser praticada para ocultar desonra própria. Era uma forma privilegiada.

Desconhece a lei vigente o chamado aborto preterdoloso. Quem praticar lesões corporais em mulher grávida e lhe causa não dolosamente aborto, pratica o crime de lesão corporal gravíssima (artigo 129, § 2º, V, do CP).

O artigo 127 do Código Penal prevê duas hipóteses de aborto qualificado, como se lê abaixo:

Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

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Esses casos de qualificação não se aplicam à gestante, mas apenas ao agente que pratica o aborto na mulher, com ou sem seu consentimento. Há os que entendem que o agente que participa do autoaborto de que resultem lesões corporais graves ou a morte da gestante, será punível, conforme o caso, por lesões culposas ou homicídio culposo.

Mas as lesões corporais graves, que qualificam este crime, não são as constituídas pelo próprio aborto. Este é um processo violento sobre o corpo da mulher grávida, que provoca necessariamente lesões, na maioria das vezes, lesões graves. Para que haja a qualificação do crime não é necessário que o aborto se consume.

Assim o evento mais grave (morte ou lesão corporal) que constitui condição de maior punibilidade, não deve ter sido querido, nem mesmo eventualmente pelo agente. Se ocorrer dolo em relação à morte ou ás lesões corporais graves, haverá concurso de crimes; o de aborto e o de homicídio ou lesões corporais, conforme o caso. Consoante ainda a lição de Heleno Fragoso, esse evento mais grave é importante ao agente, porque ele o causou culposamente, e não por sua simples causação material, algo que constituiria uma responsabilidade objetiva, instituto não agasalhado no direito penal pátrio.

Diga-se que as lesões corporais graves que as lesões corporais graves, que qualificam este crime, não são as constituídas pelo próprio aborto. Lembre-se que o aborto é um processo violento, e que, em regra, é ato criminoso.

Para que haja a qualificação do crime não é necessário que o aborto se consume. Basta que a morte ou as lesões corporais graves tenham resultado de meios empregados para provoca-lo, qualquer que seja o tempo ocorrido.

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Pelo anteprojeto do novo Código Penal e por sugestão de juristas poder-se-ia abrir a possibilidade de aborto nas 12 (doze) primeiras semanas de gestão em razão da incapacidade psicológica da mãe de arcar com a gravidez. Para tanto, médico e psicólogo deveriam constatar que a mulher não apresentaria condições psicológicas para arcar com a maternidade. Ora, isso pode caracterizar a própria legalização do aborto, desprezando-se a própria vida, que deve ser protegida desde a sua concepção.

O projeto, entretanto, à luz do que já foi interpretado pelo Supremo Tribunal Federal, mantém a exceção no que concerne ao caso de anencefalia comprovada do feto.

III - A PERMISSÃO LEGAL PARA O ABORTO NA LEGISLAÇÃO COMPARADA

Ao passo que vários códigos acolheram a permissão legal para o aborto em caso de estupro (Códigos da Polônia, Iugoslávia, México, Uruguai, Argentina).

Em 2007, a Cidade do México descriminalizou o aborto. Em 2019, o estado de Oaxaca fez o mesmo. E, finalmente, em 2023, o Supremo Tribunal votou pela descriminalização do aborto em todo o México.

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No Paraguai, a interrupção da gravidez só é legal quando há risco de vida para a mãe. Ora, naquele País, uma menina de dez anos que engravidou após ter sido estuprada pelo padrasto e cuja mãe foi presa como cúmplice, teve negado seu pedido de abortar.

A justiça entendeu que não era o caso de conceder tal benefício mesmo tendo ela 34 Kg e medindo 1,39 metros.

.Ainda na América Latina, Chile, El Salvador e Nicarágua já proibiram o aborto mesmo que necessário para salvar a mãe.

O Uruguai descriminalizou o aborto.

Aliás, na América Latina, Cuba (aborto permitido desde 1965) e Uruguai são os únicos países que permitem procedimento em qualquer circunstancia. No Uruguai, o aborto é permitido, em qualquer circunstância, até a décima segunda semana de gestação e em casos de estupro, são permitidos até a décima quarta semana. Quando há risco para a mãe ou má formação do feto, podem ser feitos em qualquer período de gestação. A Lei está em vigor desde 2012, sendo que, após sua aprovação, 6.676 abortos foram feitos e nenhuma morte foi registrada.

Na Argentina a legislação permite a realização de abortos em caso de risco à vida e á saúde da mãe, estupro e abuso a uma mulher incapacitada.

Em Cuba, a mulher pode fazer o procedimento por qualquer motivo até a décima semana de gestação. Após a legalização, em 1965, pesquisas indicaram a queda acentuada de mortalidade materna, além da diminuição da taxa de fecundidade no país

Na França, o aborto é permitido, por qualquer motivo, até a décima segunda semana de gravidez, sendo que havia exigência do aconselhamento da mulher durante o processo. Hoje, com aprovação de emenda pela Assembleia Nacional, o procedimento passou a ser permitido nos casos em que a mulher não queira dar procedimento com a gravidez. O País se tornou o único do mundo a garantir a interrupção voluntária da gravidez na Constituição. A medida havia sido aprovada pelo Parlamento recentemente e foi promulgada. O presidente Macron disse que quer expandir esse direito constitucional pela União Europeia.

Nos Estados Unidos, houve uma reação ao entendimento da Suprema Corte no julgamento do caso, ocorrido em 1973, sob a diretriz da Suprema Corte, Roe v. Wade. Na maioria dos estados, é permitido realizar o procedimento até o momento do nascimento, em casos de riscos para a mãe. Entretanto, desde 2010, em estados com orientação conservadora e com os Republicanos em maioria no legislativo, aproximadamente perto de cento de trinta leis que restringem o aborto foram aprovadas. Em outubro de 2013, por exemplo, o estado do Texas aprovou uma legislação que endureceu a aprovação do procedimento. Registra-se uma reviravolta da Corte Suprema americana, hoje de maioria conservadora, com relação àquele julgado já citado.

Em síntese: A Argentina legalizou o aborto até 14 semanas em 2020. O Uruguai, em 2012. A Guiana, em 1995. E a Guiana Francesa, colônia da França, em 1974. A Colômbia descriminalizou o aborto até 24 semanas de gestação em 2022. No Chile, o aborto não é crime em alguns casos desde 2021. No Brasil, assim como na Bolívia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, o aborto ainda é crime, mas há exceções para gestações decorrentes de estupro, malformação do feto ou risco de morte para a mulher.

Adite-se, outrossim, que, segundo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ou Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994) 30 , a violência contra a mulher se caracteriza por qualquer ato baseado em gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico contra a mulher, tanto na esfera pública como na privada (art. 1º), podendo ser perpetrada pelo Estado e seus agentes (art. 2º).

IV – A EXCLUSÃO DA ANTIJURIDICIDADE: O ABORTO SENTIMENTAL

No entanto, não se pune o aborto:

a) se não há outro meio para salvar a vida de gestante (aborto necessário);

b) se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não pode sequer ser chamada de aborto. Na prática, os ministros descriminalizaram o ato de colocar fim à gravidez nos casos em que o feto não tem o cérebro ou a parte vital dele, no que alguns ministros chamaram de o “julgamento mais importante de toda a história da corte”.

São hipóteses de exclusão de antijuridicidade de ação.

A primeira hipótese é o que a doutrina chama de aborto necessário ou terapêutico, que seria um caso de estado de necessidade,

Somente terá cabimento a exclusão do crime, se houver situação de grave risco de morte com o desenvolvimento da gravidez e o parto, devendo o aborto ser praticado com todas as precauções. Isso porque somente poderá ser realizado para evitar a morte da mulher diante de um diagnóstico seguro de médico. O erro do médico vai se constituir em discriminante putativa.

Merece atenção a exclusão do crime de aborto se resulta de estupro.

Ainda para Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, página 122), excluindo o crime de aborto no caso de interrupção da gravidez resultante de estupro o legislador brasileiro, há perto de 80 anos, deu solução corajosa a questão, que sabemos é altamente controvertida. É o aborto sentimental.

Na lição de Manzini, VII, 536, trazida a colação ainda por Fragoso, em sua obra citada, “seria inumano constranger uma mulher que já sofreu o dano da violência carnal, a suportar também o da gravidez, mesmo porque a ordem jurídica não pode se opor à remoção das consequências imediatas e imanentes de um crime. Para Manzini essa espécie de aborto pode ser justificada pelo estado de necessidade, reconhecendo o perigo de grave dano à pessoa, em face das consequências morais, familiares e sociais do parto.

O aborto sentimental, ocorrido em consequência de estupro, não se confunde com o aborto eugênico (conveniência de evitar gravidez indesejável) ou o aborto por indicação social, à luz de dificuldades econômicas dos pais, que são sempre criminosos perante a lei penal brasileira. O aborto eugênico é o executado ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos pais, como se lê, inclusive da lição de Magalhães Noronha (Direito Penal, volume II, segunda edição, pág. 72), dentre outros.

Assim explicaram Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (Manual de direito penal, volume II, 25ª edição, pág. 68):

“Para que o médico pratique o aborto não há necessidade evidentemente de existência de sentença condenatória contra o autor do estupro e nem mesmo de autorização. Deve ele submeter-se apenas ao Código de Ética Médica, admitindo como prova elementos sérios a respeito da ocorrência do estupro (boletim de ocorrência, declarações, atestados etc)....”

Se o médico for induzido em erro inevitável por parte da gestante ou de terceiro sobre a ocorrência do estupro, que não teria se verificado, não responderá por crime de aborto (erro do tipo permissivo).

V – A RESOLUÇÃO DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA RESTRINGINDO O ABORTO LEGAL ATÉ 22 SEMANA: A ADPF 1141

Informou o portal de notícias do STF que o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes concedeu liminar, no dia 17.5.2024, que suspende a resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que restringe o aborto legal resultante de estupro após 22 semanas.

Em sua decisão, ele diz que os efeitos da resolução estão suspensos até o julgamento final da controvérsia e determina que o CFM seja comunicado e que forneça informações no prazo de dez dias.

A decisão foi proferida em uma ação proposta pela PSOL e a Anis em que afirmam que a resolução institui “tratamento discriminatório no acesso à saúde”, indo na contramão das situações previstas em lei para a realização do aborto legal no Brasil— em caso de estupro, anencefalia do feto ou que envolva risco de vida à gestante.

Sabe-se que o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou recentemente uma resolução que veda ao médico a realização da “assistolia fetal” para interrupção de gravidez, quando essa tem mais de 22 semanas.

O procedimento médico citado provoca a morte do feto, antes da realização do aborto, e é feito por meio da aplicação de substâncias como cloreto de potássio e lidocaína, injetadas no coração do feto. A recomendação do CFM afirma que a prática não pode ser feita quando a mulher está com mais de 22 semanas de gestação e há possibilidade de “sobrevida do feto”.

Como lembrou o portal de notícias do Correio Braziliense, em 4.4.24, atualmente, pela literatura médica, um feto com 25 semanas de gestação e peso de 500 gramas é considerado viável para sobreviver a uma vida extrauterina. No período de 23 a 24 semanas, pode haver sobrevivência, mas a probabilidade de qualidade de vida é discutida.

A normativa do CFM foi escrita em 21 de março e publicada, no dia 3.4.24, no Diário Oficial da União.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) publicou, no dia 5.4.24, uma nota contrária à resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que limitou o aborto legal no Brasil.

A Febrasgo aponta que a limitação vai contra as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que não estabelece limite de idade gestacional para a realização do aborto e recomenda a assistolia fetal em vez do esvaziamento uterino, que é muito mais traumático para a gestante.

Destaco o que disse o ministro Moraes no julgamento da liminar naquele ADPF 1141:

“Verifico, portanto, a existência de indícios de abuso do poder regulamentar por parte do Conselho Federal de Medicina ao expedir a Resolução 2.378/2024, por meio da qual fixou condicionante aparentemente ultra legem para a realização do procedimento de assistolia fetal na hipótese de aborto decorrente de gravidez resultante de estupro.”

Isso porque o art. 5º, II, da Constituição Federal, preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. Com o primado soberano da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei, como acentuou o ministro Alexandre de Moraes, naquela oportunidade.

VI – O PL 1.904/24: UM PROJETO DE LEI MATERIALMENTE INCONSTITUCIONAL

Lembro o que disse Joel Pinheiro da Fonseca, em artigo para a Folha, em 18.6.24:

“Há que se reconhecer, contudo, que um feto de mais 22 semanas está já num grau de desenvolvimento que levanta ressalvas. A lei tem que traçar uma linha em algum lugar. Com mais 22 semanas, o feto já tem reações —ao toque, por exemplo— que condizem com a senciência, ainda que num nível básico. A partir da 25ª semana, já pode sentir dor.

.....

Estima-se que cerca de um terço dos abortos legais seja feito após as 22 semanas. Parte disso são casos de anencefalia, que só é descoberta com a gravidez já avançada. Outro tanto, contudo, são vítimas de estupro que demoram a descobrir a gravidez. Podemos concordar que, tendo se chegado a esse ponto, qualquer escolha é trágica e envolverá muito sofrimento. Por mais que em alguns casos o aborto tardio seja necessário, é desejável reduzir ao máximo esses casos.”

Entretanto há um Projeto de Lei (PL) nº 1904/2024 da Câmara dos Deputados onde assim de diz: “Acresce dois parágrafos ao art. 124, um parágrafo único ao artigo 125, um segundo parágrafo ao artigo 126 e um parágrafo único ao artigo 128, todos do Código Penal Brasileiro.

O Projeto de Lei nº 1904/24, de autoria do Deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) e outros, foi protocolizado na Câmara dos Deputados em 17/05/2024 e, em suma, propõe alterações ao Código Penal para equiparar o aborto realizado após 22 (vinte e duas) semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nas hipóteses permitidas naquela legislação, isto é, no casos de gravidez resultante de estupro (Art. 122 do CP). Vejamos ipsis litteris o texto proposto: “Art. 1º Esta Lei altera o Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a fim de acrescer dois parágrafos ao artigo 124, um parágrafo único ao artigo 125, acrescer um segundo parágrafo ao artigo 126, e acrescentar um parágrafo único ao artigo 128 do mesmo diploma legal. Art. 2º O art. 124 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar acrescido dos seguintes parágrafos:”Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: ...........................................................................................” “§ 1 Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”. “§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la,se as consequências da infração atingirem o próprioagente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.” Art. 3º O art. 125 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:

“Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: ........................................................................................” Parágrafo único. Quando houver viabilidade fetal, presumida gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”. Art. 4º Renumere-se o parágrafo único do art. 126 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, como parágrafo primeiro e acrescente-se o seguinte parágrafo segundo:”Art. 126.............................................................. “. “§ 1º.......................................................................” “§ 2º Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”. Art. 5º O art. 128 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único: “Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: ...................................................................... ............” “Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo. " Art. 6º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

O PL recebeu voto favorável de requerimento de urgência na Câmara dos Deputados.

O PL é inconstitucional por afrontar a diversos princípios.

A propósito, trago fundamentos trazidos pelo Conselho Federal da OAB, em parecer sobre o tema:

“A criminalização pretendida é grave porque afeta especialmente as meninas e mulheres mais vulneráveis, principalmente social e economicamente. Meninas vítimas de violência sexual são as que demoram mais a identificar e conseguir pedir socorro em situações de violência, a perceber uma gravidez decorrente de violência e a chegar aos serviços de saúde. É a elas- principalmente- que será vedado o exercício do direito previsto em lei com a proibição do procedimento, com consequências graves à sua saúde e à sua vida.

....

O Aborto sentimental é aquele praticado para interromper a gravidez resultante do estupro. Perante o Código Penal brasileiro não há restrição, no tempo, para que a vítima (mulheres e meninas estupradas) decida pelo abortamento. A proposta em exame pretende limitar exatamente essa norma penal permissiva do aborto legal. Trata-se não apenas de uma restrição temporal para o abortamento de um feto concebido a partir de um crime de estupro, mas obriga meninas e mulheres, as principais vítimas de estupro, a duas opções: ou ela é presa pelo crime de aborto, cujo o tratamento será igual ao dispensado ao crime de homicídio simples, ou ela é obrigada a gerar um filho do seu estuprador. O escopo da lei penal permissiva foi evitar exatamente a maternidade odiosa proveniente de estupro que recordará à mulher, perpetuamente, o horrível episódio da violência sofrida. A imposição dessa limitação temporal trazida pelo presente Projeto de Lei, deve se coadunar com os princípios que regem o direito penal, o que, salvo melhor juízo, não acontece na proposta legislativa em análise.”

Segundo a OAB, as dificuldades impostas pela realidade justificam a interrupção da gravidez acima da 22ª semana.

“No Brasil, o abortamento seguro está restrito a poucos estabelecimentos e concentrada em grandes centros urbanos. A dificuldade em reconhecer os sinais da gravidez entre as crianças, ao desconhecimento sobre as previsões legais do aborto, à descoberta de diagnósticos de malformações que geralmente são realizados após primeira metade da gravidez, bem como à imposição de barreiras pelo próprio sistema de saúde (objeção de consciência, exigência de boletim de ocorrência ou autorização judicial, dentre outros) constituem as principais razões para a procura pelo aborto após a 20ª semana de gravidez”, explica o parecer.

Foram realizados”75 mil estupros por ano, com 58 mil desses estupros contra meninas de até 13 anos, 56% negras. O retrato das vítimas deste projeto de lei, se aprovado, são meninas pobres e negras que tem voz aqui, sim, nesse plenário. Eu vim desse lugar”, disse Silvia de Souza durante a sessão do Conselho da OAB.

Ora, há aplicação no direito penal do princípio da intervenção mínima. e da reserva legal. Nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo direito penal, como nem todos os bens jurídicos são por ele protegidos. Seleção criteriosa que justifica o uso do direito penal como ultima ratio, como fez menção Cezar Roberto Bitencourt (Tratado de Direito Penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 1).

Há evidente desumanidade no projeto de lei ao propor sanção penal a estuprada que realiza o estupro com pena superior a prevista ao estuprador, que pratica um crime hediondo.

O presente Projeto de Lei, ao sugerir a limitação temporal acima de 22 semanas de gestação para o exercício da norma penal permissiva (abordo sentimental), e ao impor a pena de homicídio àquela menina ou mulher estuprada que, dentre as opções de ser presa pelo crime de aborto, ou gerar um filho do estuprador, optou em realizar o aborto, remonta-nos à idade média, e se assemelha ao banimento da mulher vítima de estupro.

A aplicação dessa pena a estuprada que realiza o estupro é uma afronta à razoabilidade e a devida proporcionalidade.

O Caso Manuela vs. El Salvador, julgado no ano de 2021 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) , assemelha-se ao caso em tela, na ocasião a Corte entendeu como desproporcional a pena de 30 anos aplicada a Manuela pelo crime de infanticídio, entendendo que o estado não considerou o período puerperal da agente, contrariando a Convenção Americana, assim, a Corte assentou o entendimento de que uma pena desproporcional pode se configurar como pena cruel e, na ocasião determinou que El Salvador corrigisse a pena aplicada e que, enquanto isso não ocorresse, os juízes realizassem o controle de convencionalidade não aplicando leis inconvencionais.

Dir-se-á que o citado PL afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional impositivo.

Repito que não há proporcionalidade e razoabilidade na pena aplicada.

Na forma sugerida pelo presente Projeto de Lei, a equiparação às penas do homicídio, ferem os aludidos princípios, primeiramente porque, a pena atribuída à vítima do crime de estupro em razão do abortamento tardio, qual seja, pena - reclusão, de seis a vinte anos, apresenta-se absolutamente superior ao tratamento dado pelo Código Penal vigente.

Chega-se ao absurdo.

VII – O BRASIL É UM ESTADO LAICO

Segundo a OAB, o PL também feriria o princípio do Estado Laico, que sustenta que convicções de determinada religião não podem ser impostas ao conjunto da sociedade.

“A política criminal proposta no PL em análise, no seu aspecto sociológico aparenta estar imbuída de convicções teístas, ao passo que se afastar da realidade de meninas e mulheres brasileiras estupradas e engravidadas por seus algozes e, portanto, não encontra abrigo no princípio da laicidade do Estado”, diz.

Mister para que se entenda o PL 1904/24, será salutar ressaltar uma visão do estado laico, como entendido sob o ponto de vista constitucional.

O estado é laico no Brasil.

A República brasileira separou a Igreja do Estado, assegurando a ampla e absoluta liberdade religiosa, tal como dispunha o artigo 72, § 3º, da Constituição de 1891.

Dir-se-á que a laicidade, que não se confunde com laicismo, foi colocada como princípio constitucional pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891, cujo artigo 11, § 2º, dispôs que é vedado aos Estados e à União”estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”. Tal preceito é mantido pela Constituição de 1934(artigo 17, incisos II e III), pela Carta democrática de 1946 (artigo 37, incisos II e III), pela Constituição de 1967 e pela Emenda Constitucional nº 1/69 (artigo 9º, inciso II). A laicidade estatal revela-se princípio que atua de modo dúplice: a um só tempo, salvaguarda-se as diversas confissões religiosas do risco de intervenção abusiva do Estado nas respectivas questões internas, protegendo o Estado de interferências indevidas provenientes da seara religiosa, de modo a afastar a prejudicial confusão entre o poder secular e democrático e qualquer igreja ou culto, inclusive majoritário.

Consagra-se, no Brasil, a liberdade religiosa e ainda o caráter laico do Estado. A liberdade religiosa e o Estado laico determinam que as religiões não guiarão o tratamento estatal dispensado a outros direitos fundamentais, que envolvem, por exemplo: o direito à autodeterminação, o direito à saúde física e mental, o direito à privacidade, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de orientação sexual e o direito à liberdade no campo da reprodução.

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Rogério Tadeu Romano
Procurador regional da República aposentado, professor de Processo Penal e Direito Penal e advogado. Foto: Arquivo pessoal
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