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Regionalização no saneamento básico: um tiro que não pode sair pela culatra

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Por Rafael Vanzella
Rafael Vanzella. Foto: Divulgação

Em recente querela constitucional, a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON) pretende a declaração de inconstitucionalidade de uma lei paraibana. Pela norma estadual, a Paraíba instituiu microrregião de saneamento básico e autorizou que a autarquia interfederativa resultante dessa criação atribuísse a prestação dos respectivos serviços à Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (CAGEPA), uma companhia controlada pelo próprio estado. Pode isso?

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De simples instrumento de planejamento e regulação de vários de municípios, na versão original da Lei Nacional do Saneamento Básico, a regionalização tornou-se, sob o novo marco legal, meio para o compartilhamento, inclusive compulsório, da titularidade dos serviços de saneamento básico. Uma vez criadas, pelos estados, regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, os municípios passam a exercer aquela titularidade em conjunto com o estado.

Isso leva a uma estrutura de governança, por vezes despersonalizada, que vem geralmente tomando a forma de uma autarquia interfederativa. Interfederativa, leia-se, não pela origem - a lei criadora da região e da autarquia é estritamente estadual -, mas pela colegialidade: dos seus órgãos deliberativos, participam os municípios e o estado consoante critérios de voto razoavelmente indefinidos. Há apenas uma baliza certa: o estado não pode concentrar o poder decisório nesses órgãos. Se não pode concentrar, não há, todavia, óbice para que o estado se articule com um único município para que, juntos, alcancem maioria nas deliberações autárquicas, carregando os demais entes para o destino que combinarem entre si.

Fato é que as prerrogativas estaduais em matéria de criação das regiões não deveriam servir para que o estado as utilize para aprofundar privilégios de suas companhias e, indiretamente, dos seus direitos enquanto acionista controlador. Conferir ao estado o poder de regionalizar serviços públicos que são municipais, e de prestar tais serviços por meio de operador que o mesmo estado escolhe sem licitação, é desvirtuar a Constituição de 1988, que teve a municipalização como pressuposto da democracia. É uma situação pior, porque mais autoritária, do que a anterior ao novo marco legal do saneamento básico, porque se deixa de dar aos municípios a possibilidade de escolher o operador e de negociar com a empresa estatal as condições do contrato de programa. Já agora, a se prosperar a disputada lei paraibana, os municípios terão de se sujeitar às condições dos serviços que o estado e sua empresa controlada entabularem entre si. Acreditar que os municípios minoritários nos colegiados regionais terão capacidade de negociar alguma coisa é desconhecer a preponderância que o estado assume nas regiões, preponderância essa que se fez desejada não para entregar a prestação a uma entidade controlada pelo próprio estado, mas para que, servindo-se de sua musculatura institucional, pudesse o estado conduzir processos licitatórios mais transparentes e republicanos, dos quais resultassem contratos mais bem estruturados.

A par da essência, vamos à letra: o novo marco legal exigiu que a prestação de serviços públicos por entidade que não integre a administração do titular ocorra por meio de concessão, precedida de licitação, proibindo-se contratos de programa. A Paraíba promove, portanto, duas violações da lei federal: despreza os institutos da concessão e da licitação e dissimula um contrato de programa.

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Não há outro instrumento a ser celebrado entre uma autarquia interfederativa e uma companhia exclusivamente estadual. Não se trata de descentralização, essa última exige que o delegatário seja igualmente interfederativo, o que está longe de ser a situação de uma companhia estadual de saneamento básico. Se essa última refletisse a interfederatividade da autarquia regional, e contanto que fosse um reflexo material e autêntico, não um mero abuso de forma, haveria plausibilidade na tese: os municípios, uma vez que tivessem participações acionárias na empresa estatal, poderiam, enquanto destinatários dos serviços por ela prestados, e acionistas beneficiários de seus dividendos econômicos e políticos, participar da gestão da companhia, vetando decisões contrárias aos seus interesses.

Nessa hipótese, assumir que estado, enquanto controlador da estatal, estaria impedido de votar na deliberação, deixando apenas os municípios, enquanto acionistas minoritários, decidirem por um contrato entre partes relacionadas, seria mera decorrência dos arts. 116 e 117 da Lei das S/A, para evitar desvio do poder de controle.

Estamos, porém, muito longe de qualquer possibilidade de qualificar a CAGEPA - ou qualquer outra companhia estadual, aliás - como sendo interfederativa, e a regionalização, instrumento que se pensou para estender direitos básicos a milhões de excluídos, corre o sério risco de servir a propósito contrário: o tiro que sai pela culatra acerta abuso de forma, desvio do poder de controle e uma inevitável autocracia regional.

*Rafael Vanzella, sócio da área de Infraestrutura do Machado Meyer Advogados

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